Recentemente numa ida ao Centro do Rio
encontrei com o Fernando Rodrigues divulgando seus livretos no bom
e velho esquema faça-você-mesmo dos poetas de calçada.
Fernando tem vinte e poucos anos é morador da Ilha do Governador e
recentemente ingressou no curso de Filosofia do IFCS.
O poema a seguir foi retirado do
livreto “Manifesto” e faz parte do livro de mesmo nome previsto
pra ser lançado em breve.
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A cidade e seus contrastes na visão do poeta.
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“Manifesto”
Digestão escarrada dos séculos
passados;
a realidade carioca, reflexo onírico
dos
desejos feridos propagados em ecos de
alcance
inestimável.
A maquinaria sinfônica dos sentidos
desregrados,
enganados, descarnados, transcende ares
vezes tropical, vezes mórbidos, vezes
os dois.
A cidade, esse monstro de energia que
mastiga,
canta, olha, julga, deseja, rouba, mata, urra,
massacra, não para,
no movimento dos carros, olhos dos
viciados,
gracejo dos privilegiados,
necessidade dos marginalizados;
é a poesia síntese não escrita de
eras cíclicas
de membros mutáveis e estrutura
estática,
correntes de toda humanidade não
definida,
canalizada pra alguns pontos, como rios
nos mares,
o Rio de Janeiro é um desses mares,
realidade confusa, duvidosa, com
diferentes
perspectivas que se cruzam, se
aproximam,
entrelaçam ao inconsciente, no irreal.
Os mendigos se revirando,
carros engarrafados buzinando,
as multidões ejaculadas dos prédios
no
horário de pico,
os pirados berrando se borrando e
comendo
em marmitas de alumínio doadas,
o exército de salvadores recolhendo
almas
e as vertendo em cédulas sempre mais
altas,
o voto comprado,
a cerveja gelada,
a cachaça barata,
as putas moribundas,
os reacionários esclarecidos
como vacas lobotomizadas,
os revolucionários com o grito
estéril,
os que se acham mais sóbrios que os
dois e
falam que mudanças são ferrugens
intelectuais,
os traficantes transformados em ídolos
nas favelas
e pelos circos de playboys que desejam
um dia
ser com os jogadores de futebol,
a Av. Presidente Vargas fervilhando e
a Uruguaiana em polvorosa,
fome,
engavetamento nos túneis,
a Zona Norte extensa, esquecida,
movimentada,
parada, suburbana,
Baía de Guanabara sufocada com marés
de lixo
a Zona Sul pros gringos, com suas
pompas,
arrastões, edifícios caros
amontoados, praias cheias
torrando banhistas aos sol,
uma Zona Oeste ignorada,
mas com uma Barra e Recreio
novaiorquisados,
ritmo incessante dia e noite
do monstro de energia gerador de
êxtase, euforia,
massificação, ilusão: transfiguração
da
realidade irreal individual ou não.
Essa poesia não escrita, mas vivida,
não acadêmica,
toma forma no campo da arte da mesma
maneira
que no dia a dia:
digerindo e vomitando tudo de uma só
vez;
um parto convulsivo e doloroso dessa
existência
nervosa e desordenada do Rio.
Assim essa poesia pode agora ser parida
sobre o papel e encontrar seu espaço,
mesmo que seja no esquecimento
e no seu aborto enquanto literatura.
Fernando Rodrigues, Março de 2013.
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