Sexta-feira Lúcia
Estou aqui te observando enquanto você caminha pele orla, com as mãos nos bolsos desenhando percursos sobre as linhas da calçada. Vejo-te brincando com as chaves pra aliviar as mãos tensas, sorrindo sem graça pro vizinho que te cumprimenta. Então você pára de repente, indecisa entre água de coco e refrigerante, e escolhe o mais barato. Guarda o troco e senta-se com os olhos baixos diante do orelhão, pensando se deve ou não ligar pra ele. Mas como sempre você pensa demais, acha que está sendo inconveniente, insistente, e prefere desistir, sem saber o quanto ele espera pelo seu telefonema.
Seus dedos bailam no ar, e você sente uma tristeza fria como estas noites de agosto. Dói tanto, mas não há pranto, você já não sabe chorar, as lágrimas endureceram e ficaram cravadas no fundo d’alma, e como pesam. Ergue o corpo e segue na caminhada. Não sabe se volta pra casa ou continua andando, não sabe. Estanca o movimento, sente o mundo girando e tem de vontade de gritar, mas não grita, silencia e volta ao lar. Eu te sigo. Ao chegar os cães lhe fazem festa e você os enxota aos pontapés, sente raiva de si, sente demasiadamente. Curva-se e os acaricia numa tentativa de desculpas, e eles as aceitam. Entra no quarto, tira as roupas e as arremessa sobre a cama, deita-se nua no chão frio, sem saber o que fazer desta noite e assim fica, imóvel por um longo tempo.
Na sua memória passeiam as lembranças de todos aqueles que pareciam te olhar de uma maneira diferente, e realmente alguns deles te olhavam. Mas você sempre se achando indesejável, sem-sal, embora no fundo desconfiasse que as outras não tinham um terço do seu valor. Você tinha um mundo no peito, mas parecia não haver ninguém para ouvi-la. De uma daquelas tardes distantes, ressurge a imagem do cara que esbarrou contigo na saída do cinema. Seus olhares se encontraram e naquele segundo vocês pareciam descortinados um para o outro, mas as palavras não saíram, e ele se perdeu no meio da multidão. Desde então aquele rosto nunca mais se apagou da sua lembrança. E vieram outros verões, alguns encontros, bem menos que desencontros, e a terrível sensação do tempo que passou sem ser vivido.
Na buzina de um automóvel, você desperta das lembranças e volta ao presente. Observa a luz do poste que invade o quarto e pousa sutil no bico do seu seio, decide levantar-se e diante do espelho solta um riso discreto. É hora de voltar à vida. Escolhe o seu vestido mais bonito e sai mais uma vez à procura de uma noite diferente.
William Galdino, 2005.
3 comentários:
Esse é o meu garoto!
Forte, denso, melancolia arrastada. Te superaste!
beijo
Caral**!
Bom estilo na narração; enredo, recheio mesmo. Criou um terreno pedregoso e não deu uma topada sequer.
Superação é a palavra. Muito bom.
é... bom de prosa também...
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