Meu Anjo
Quando derrubaram a porta, seus olhos vidrados miravam o mar, no reflexo de um espelho que, estrategicamente posicionado frente à janela, iluminava nos matizes da chuva que descia, o corpo franzino do anjo.
Uma imagem orgânica da enseada, emoldurada pela melancolia do irreversível, inspirava a leveza de uma beleza pura; diferente da ordinária plasticidade fugaz que envolve as coisas consideradas belas no dia-a-dia.
A atmosfera parada, inacessível ao pranto e assombro dos curiosos vizinhos, fazia jus ao paradigma da eternidade e suscitava paradoxos inconcebíveis, perceptíveis somente à pele.
Ela morrera há dias e, no entanto, viveria ainda sua mortalha sobre pernas vacilantes por décadas. Seus netos a abraçariam inconscientes do mar que coube um dia naqueles olhos sempre transbordantes e tristes.
Ao fim de poucas horas ela levantou-se e serviu, claramente desejosa de que os invasores sumissem, café e bolo e explicou, calma, que José se fora.
Um deserto tomara o trono da enseada; seus olhos continuaram úmidos até o fim, porém sem jamais sorrir novamente.
(Pedro Lermann - 20 de março de 1972)
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