Ercília, minha estrela
Eu que diria de tuas falas esmaecidas
Mil chuvas cobrindo na janela à vista cinza
Eu que diria das manhãs voltando da escola
E em tua boca fina o cigarro pendurado,
fantasmas na fumaça - miasmas
E minha mãe à milhas dali, num escritório fundo.
Que diria de tuas roupas, a fossa no quintal
Eu tive um castelo aos pés do muro
Funeral de um playmobil e duas bolas de gude.
O que dirão delas?
O que diria teus cabelos sob o lenço, arredios?
Os guaranis berravam em teus olhos!
Índios de palavras tão doces quanto tuas ordens;
E eu me perdia com a vizinha atrás da casa...
À tardinha o café tão preto e solitário
e o pão sem manteiga...
O que diria desse gosto?
Era desgosto, e gosto afincados
Trancafiava tuas horas em mim, ai vó!
Eles sabem o que eu sinto, mas não me entendem.
O que diriam de você e suas velhas coisas
em suas velhas caixas sobre o armário de mogno
antigo?
Eles não sabem o que você sentiu àquela noite
vendo a casa ir abaixo... eles souberam nos jornais.
Souberam na patrulha do rádio, que ouvias pela
casa...
O vizinho de cima, Clóvis, o diabo em pele...
ateara fogo ao corpo, e esfaqueara a mulher...
Hoje os filhos são pastores - cheiro de carne humana
queimando.
As peles sobre o cimento riscado da cisterna.
Um punhal quase acerta o Zé.
Eu me lembro...
E o medo das noites de estrelas?
Algum ovni pousara naquele morro... à esquerda.
Enquanto, imóveis, dois móveis, sofás
dentro da sala pequena
em paredes pintadas de cal e xadrez azul,
gritavam a agonia de uma vida cheia de ínfimas
alegrias.
Lembro da moeda que engoli, ou bala soft?
Quanta falta de ar vó!
A senhora ainda me ouve?
E o telhado?
Ainda florindo o negro musgo?
Passei a infância ali de cima,
observando o mundo.
- Rafael!! Vem tomar banho! - e eu descia por uma
madeira oca e cheia de pregos...
Que diriam de mim vó?
A senhora, Ercília, nome tão lindo!
- "Bença" vó?
- Deus te abençoe...
10.12.06
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6 comentários:
soberano !
é repleto de imagens bem-descritas... a separação das palavras finais da estrofe anterior, a partir da 5a, produz um efeito sensacional.
po, adorei esse...
Vamos sim... precisamos conversar mais sobre as impressões que por ventura provocamos uns nos outros né?
Me adicionem: rafaelelfe@hotmail.com
ou mandem e-mail: rafaelelfe@gmail.com
É nessa poesia, toda vez que eu leio, eu me vejo no quintal da minha vó, lá no morro do Booggie Wooggie, com os cabelos repartidos ao meio, vendo o dia rasgar o céu... quando escrevi, confesso que chorei.
abraços!
anotado, rafael !
trovadores, cervejinha pré-natal na lapa, como sugeriu o william ... ?
"confraternização" do Presença confirmada, pelo menos da minha parte.
vou estar enrolada com as noites da semana que vem, preparando as coisas pra partida pra santarém.
mas eu sugiro a terça (19) ou a quarta (20), mesmo horário. e pode ser o mesmo local tbm, preferido do vinícius.
beijos
gente, eu viajo na sexta de manhã cedo. por isso não queria farrear mto na quinta, pra arrumar a mala e não chegar estragada lá.
mas, se for a única noite disponível pra ti, vi, pode ser na quinta, então.
beijos
Parabéns Rafael, seu poema é belíssimo, estou sem palavras!
Perdi-me nesses versos, foi como se tivesse revivido os meus momentos de infância também.
valeu um abraço!
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