22.7.08

Uma pequena alegria

Fotomontagem,2005


Fecha o chuveiro.
Escorre pelo ralo o resultado de mais um dia de luta. No vestiário o último dos funcionários calça seu tênis e guarda a toalha molhada na mochila. Desce as escadas e ao bater o cartão percebe que já passa das onze. Um boa noite cabisbaixo é dado a empacotadora que lhe lembra uma antiga paixão da adolescência. Promete a si mesmo que amanhã a convidará para o cinema. Há duas semanas ele vem dizendo isso.
Pela economia de um vale-transporte começa sua caminhada, uma hora até encontrar o sono, no caminho decide contar quantos carros vermelhos avistará antes de chegar em casa. Conta até o terceiro, daí pra frente mergulha numa suspensão quase budista da qual só é expulso ao ser xingado por um idiota que passava na garupa de uma moto.
Ao atravessar a rua diante de um prédio modesto, repara na luz do abajur de um dos apartamentos e sua mente fantasiosa imagina que ali naquele momento há uma adolescente ninfomaníaca transando loucamente com algum primo mais velho. Olha pra trás e lamenta-se por nunca ter tido uma prima ninfomaníaca. E isso o faz lembrar-se das sextas feiras em que se escondia embaixo das cobertas diante da tv, esperando ansiosamente o início de mais uma pornochanchada, que o faria esquecer a sua frustração por não ser um Don Juan.
Ri sutilmente enquanto seus pés saltam pelo meio fio.No muro chapiscado avista uma antiga pichação de sua autoria, dos tempos em que botava a lata na cintura e saia pedalando pelas ruas à procura de diversão. Entristecido por reviver o passado decide se concentrar no caminho que ainda falta até chegar ao descanso que o corpo lhe pede. Ao aproximar-se da última esquina que o separa de sua rua, um carro estacionado na calçada dificulta a sua passagem, olha nos olhos da menina sentada no banco do carona, intimidada ela desvia o olhar, ele continua a caminhar, até que ouve o motor ser ligado e detém seus passos. Imediatamente vem à sua cabeça a lembrança de um conto, no qual um homem aparentemente normal saía à noite em seu automóvel, à procura de uma vítima pra atropelar.
Na sua contemplação àquele belo rosto, não observou quem estava ao volante, fica pensando que talvez a menina linda tivesse ao seu lado algum namorado ciumento que agora aceleraria e passaria por cima do seu corpo. Mas não foi o que aconteceu.
Lentamente o carro passou ao seu lado, adiante ele viu a menina colocar seu rosto pra fora da janela e com a ponta dos dedos junto aos lábios mandar um beijo em sua direção, ele sorriu enquanto o carro sumia na penumbra.
Naquela noite ele sonhou com os anjos.

Agosto de 2004.

4 comentários:

Rachel Souza disse...

A considerar a vida severina do caboclo,essa é uma grande alegria e não "pequena".rs
Lendo seu texto lembrei de uma música do Tom Zé a "com quantos quilos de medo se faz uma tradição" e de uns trechos dela (...Viva onívora cidade... Senhor cidadão me diga pq você anda tão triste... Tem que ferir ou ser ferido... lá lá...)
Beijo!

Isaac Frederico disse...

a expressão do cansaço neste conto tem peso tonelário .. os detalhes são intrigantes, mas o trunfo que vem rolando é a imediata identificação com sentimentos que nos são familiares a todos, a esta altura da "caminhada".

agosto de 2004 .. vc já havia publicado isso antes, vile ?

Victor Meira disse...

O conto sugere identificação em muito leitor. Principalmente os que voltam a pé pra casa pra não precisar torrar vale-transporte, hahaha.

Bacana, bem cotidiano, William, legal.

renata disse...

Faz mto tempo que não passo aqui, mas lembro mto bem desse texto.
Desculpem a ausência, mas no meio do mato internet é um luxo raramente permitido.
Saudades!
Renata