Para Flávio Brandão
No dia em que você voltou, chegou em casa exatamente quando eu já contava vinte e sete cachorros no portão. Não pareceu curioso ou mesmo interessado no fato, e pude reparar que, coincidência ou não, todos silenciaram enquanto você passava. Nenhum deles estava livre de pulgas ou feridas, grunhiam, brigavam por espaço e rosnavam enquanto se acomodavam sob as flores da entrada. Ainda chegaram uns tantos em levas posteriores e por fim, isolaram toda a fachada da casa, o jardim e os portões. Acredito que naquele dia nenhum dos cães vadios da cidade desviou da mais insólita matilha de que já tive notícia.
Lembro que você me pediu que buscasse uma cerveja, que tossiu no primeiro trago e pediu que eu também esperasse esquentar um pouco para bebermos juntos. Conversamos durante horas no sofá branco e surrado da sala, quase sempre sobre suas histórias de uma juventude longínqua, em tempos imemoriais e lugares esquecidos, casos tão vivos e formidáveis, que eu infantilmente imaginava se não passariam todos de invenção. Você falou bastante sobre as árvores do jardim, especialmente da mangueira atrás da casa e de um pinheiro que nunca deveríamos plantar, salvo se quiséssemos atrair a morte. Irritou-se quando atencioso, respondi que não, ao menino que perguntava do portão se poderia pegar as romãs caídas no quintal. Estranhamente não havia nenhuma.
Você foi ao quarto, vestiu a blusa amarela de mangas compridas e penteou os cabelos amarelecidos, voltou à sala para assistir ao jornal, mas não esperou que começasse a novela, tamborilou os nós dos dedos no tampo da mesa e cantarolou uma ou duas vezes algo que não consigo reproduzir exatamente, mas parecia uma daquelas músicas do carnaval carioca dos anos quarenta. Antes de deitar para dormir foi resoluto ao portão e expulsou a força todos os cães, que não pareciam dispostos a abandonar sua estranha vigília, porém em nenhum momento foram hostis, mesmo quando você espancou um mais pesado e teimoso que insistia em manter seu lugar. Entrou e deitou-se sem desejar boa noite ou reclamar do volume da televisão. Minutos depois, lá estavam eles novamente, mais de cinqüenta vira latas espalhados no caminho que vai do portão à varanda. Não dormi bem e notei que durante a noite o número de animais diminuía pouco a pouco, até que na última vez em que levantei, vi somente uma cadela preta em meio as roseiras, com as patas sobrepostas e o peito manchado de branco.
Acordei ao fim da manhã e descobri que naquele treze de junho você partiu enquanto eu dormia. Haviam levado você, atravessando silenciosamente a sala onde eu estava em um colchonete. Não estranhei quando disseram que todos os cachorros da cidade haviam sumido e a tarde tive vontade de abrir seu armário. Encontrei dezenas de romãs e umas fotos amareladas de pessoas que não conheci, entre elas a do time do São Cristóvão de 1937. Não pude encontrar seu baralho nem as fichas de jogo.
Hoje, percebo que lembranças como essa morrem todos os dias com os homens e eu também um dia irei sobreviver somente na memória de alguém, por algum tempo. Gosto ainda de imaginar que você acenou quando passava por mim, carregado pela sala naquela manhã e agora, deixo um pouco de você nestas linhas, para que sua memória possa me ultrapassar. Assim, um dia nossos tempos e estados coincidirão mais uma vez e talvez queiramos beber novamente, em um sonho, em uma conversa, alhures.
Vinicius Perenha- julho de 2006
Um comentário:
o parágrafo final é particularmente nostálgico e sutil. o texto inteiro é permeado por um quê de trágico.
quando o fim é iminente, não adianta, pode ter 20, 30 40 cães hehehe.
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