30.10.08

Estranha beleza

..................................................................... Karel Teige


Ardido pelo querer que não se contenta
o banquete é rapa de panela que não enche o bucho.
É amor de noite inteira que não sacia.

Beber a água e ter nova sede.

Suar em desassossego.
Saber a dor da pancada e insistir assim mesmo.

Um segundo de sol que apaga dias de tormenta.

Sísifo rolando pedras.

Pequeno gozo das farpas que entram fundo.

Moto-contínuo.

Corpo de vida castigada
carregando alma serena.

Rosa com espinho.

Cigarra estourando de tanto cantar.

É quase morrer de dor
e ainda querer amar.

Do livreto Sem persona, 2006.

26.10.08

Sol rubro

Morri de susto,
Empalideci
No meu direito de ser fraco
Por dois segundos;
Vi o sol rubro
Tão real e raro,
O sol –
Não foi um rolls-royce
Nem um recorde mundial
De novos nanossegundos.
Vulcanizei-me
Vendo a ilha no mar,
A nuvem grossa
Ao pé do sol de fogo
No morro arredondado
De cinco bilhões de anos,
Calmo que imóvel;


.................................................A água, um mar
.................................................De moléculas de
.................................................Água, um mar
.................................................De moléculas de
.................................................Água, um mar
.................................................De moléculas de …


(Aos 21 de setembro de 2008)

16.10.08

Outras formas

Outras formas, técnica mista s/papel, 2008.

......................"A alma quer mais do corpo. Quer que ele se gaste
..................... Quer que definhe, sem nada que lhe baste."
..............................................................................Donizete Galvão

Até então, livros lidos e canções ouvidas
(onde se omitiam as pedras).
Tentava encaixar o real no que as palavras tinham dito ser.
E ficava a dar pulos,
querendo alcançar o que um dia alguém chamou de nuvem,
cheio de idéias que me deram sobre o que eram nuvens.
Já não solucionava no corpo as desavenças,
e não havia ideal que desse conta.
A transcendência passava pela pele.
Tinha de ser sentida na carne.
Mais uma descoberta, afinidade também desafina.
Expresso romântico descarrilando,
dando vez as diferenças.
No fogo da paixão vulgar,
que queima enquanto há lenha.
.....................................................
Do livro Elementar, novembro de 2007.

9.10.08

Cessa o céu,
a chuva foge.
Resta o gosto úmido nas coisas.
Nenhuma estrela tem lugar no amarelo adrágio.
É um céu branco e raro.
Céu de chuva que termina contumaz,
gelada e leve;
lavrando o sopro extenso
que o mistral armou.

(tarde de outubro)

7.10.08

Intifada

Me conta o que viste
divide-te
versa-me tua perspectiva
abraça-me lenta
mas fatalmente,
intempestiva,
que as escolhas de toda tarde,
depois da soneca,
adormecem-te mais.

Um café quente
um ombro ardente
nunca o ombro de sempre,
graças a Sidarta,
Ganesha, Yeshua, Selassie,
Confúcio e Kerouac,
faz a mala
estala-me um beijo
tateia-me o hálito.
alopra a verdade que te foi dada
ama o caminho
de tua própria Intifada,

........................lá estou eu sorrindo
........................acompanhando-te ao sol
........................que nos carbura de volta
........................à redenção solta e sã
........................do indo.


(Aos 21 de setembro de 2008)

4.10.08

Fábio Portugal

Pintura de Joan Miró

Já havia postado algumas ilustrações e pinturas do Fábio aqui no presença, agora é a vez de apresentar o bom trato dele com as palavras.

Copo d’Água

Inclinou o copo d’água e surpreendeu-o o contato do líquido com os lábios. Pareceu-lhe algo absolutamente novo e irreal, como se fosse recém-nascido para a maciez do mundo. Sabia, por experiência, que estes estados de fascinação costumam passar rápido e este pensamento o entristeceu no mesmo instante intelectual em que a fascinação o deixou. Nestas horas lhe era inevitável lembrar que, realmente, pensar é estar doente dos olhos. Porém quanto mais evitava pensar mais mergulhava na escuridão fria das reflexões.Adentrou o banheiro sem acender a luz. Queria apenas as sensações. queria sentir mais, queria sentir-se vivo por mais alguns instantes. Girou apressadamente a torneira, encheu as duas mãos em concha e atirou água fria ao rosto. Mais e mais. E quanto mais atirava e se esforçava em sentir, menos sentia e parecia que se distanciava do próprio corpo, assistindo àquela cena patética de fora, como um espectador estupefato.Entrou novamente, lembrou de Teresa e do peso bom, do peso que o faz sentir-se vivo. E lembrou também de como ela se olhava, nua, no espelho por longas horas – a fim de ver aflorar a alma em seu corpo. Pensou em fazer o mesmo. Ergueu rápido a cabeça e mirou seu rosto no espelho. Sua expressão de pavor assombrou-o mais que o pavor em si. Afinal, do que se tratava? Seria loucura, epifania ou simples solidão? Que pensamentos absurdos, que agonia mais sem-propósito!Uma brisa passou por seus pés descalços no piso frio, e se fez sentir um suspiro em seu peito. Só então notou, sem assombro, que seu banheiro não tinha espelho. Que o Sol já estava alto e a luz acesa. Embuçou-se em sua sombra predileta e foi dormir. Os pensamentos mantiveram-se a uma distância respeitosa.

Fábio Portugal.

2.10.08

Deitado

Estou lá, deitado –

não estou esperando
nenhuma carta
não estou estudando
a saída do xeque
não estou pensando
em que vou comer hoje
não estou aqui sob minha pele
querendo ser só a pele,
desejando sumir pra sempre,
querendo parar de querer;
não pus o disco
pensando em levantar pra trocar de lado
não estou pagando
a prestação eterna
de nossas vidas entardecidas
nem querendo pôr ordem
na confusão deliciosa
que me ocorre
agora agora agora e agora outra vez
não morro, não puto, não teclo
não arrebanho abraços
de asseclas estupefatos
enquanto

estou lá, deitado.


(Aos 21 de setembro de 2008)