2.10.10

A morte do velho

Para iniciar as postagens deste mês de Outubro um texto recente do Elfe.
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Porque ele morreu e nem sei quando, nem como; se por sorte, azar, saúde, amor. Só vi as coisas sendo retiradas da casa. Talvez com a mesma indiferença que deve ter seguido sua morte. Aquele corpo baixo e curvado, decaindo quase que imóvel, sem ruídos maiores, para deitar, talvez no chão da sala, desenhando um sono bobo.
Vi dois homens levarem um sofá marrom pra fora, com rasgos enormes. No centro do quintal, já crepitava uma fogueira pequena, com pequenas formas negras queimando: folhas amarelas e adereços antigos da vida do velho que se misturavam ao cair do dia - a extrema-unção começou por fora.
Quando voltei, a noite já desacelerava, consegui pegar uns livros grandes, desses colecionáveis, que foram empilhados na frente do muro de eras, próximo ao banco onde ele costumava sentar-se. Sem muita iluminação, ia girando os livros pra ler a capa, buscando um pedaço de luz que varava a enorme mangueira abraçando o céu - esqueci do fato mórbido e, como num sebo, fui escolhendo o que me prestava. Alguns discos antigos também foram deixados, tratei de pegar o "Saved" do cantor estadunidense Bob Dylan; outro com hinos e canções do Clube Regatas do Flamengo. Fui amontoando nos braços, equilibrando com as coisas que trazia do mercado. Pensei na herança do velho: a casa, talvez a pequena ou grande quantia guardada numa fresta de tijolos ou no banco de Londres, quem sabe?! coleções de insetos, ele era bem do tipo que podia colecionar mariposas. Senti que minha parte no espólio estava sendo recebida. Me senti agraciado, depois de vários olás e pensamentos guardados em sua homenagem, sorri e me percebi merecedor daquelas coisas.
No dia seguinte, o movimentar de pessoas diminuiu. Ainda vi uma senhora gorda, morena, e uma criança com ar triste. A criança olhava pros fundos do quintal, como se brincasse com as formas que o matagal trazia. A senhora parecia pensar em alguma coisa irritante, como o que fazer com aquela velha casa, ou como se livrar dos possíveis filhos que viriam reclamar algo. Não parecia demonstrar nenhum apreço por nada ali. Eu nunca tinha visto aquela senhora, logo, não deveria ser sua companheira, ou viúva. Talvez a única pessoa ligada ou não a família do velho, do tipo de gente que faz favor por conveniência.
Caminhando pensava numa penca de outras formas pra morte do velho. Lembrava dele no portão, sentado, observando o escuro cair sobre a tarde, nunca o vi pela manhã. Ia rascunhando sua entrada pela porta da frente - como devia ser lá dentro?, imaginava uma casa escura, com objetos estranhos e cheiro de coisa úmida; travesseiros mofados e um antigo som de rádio ruidando a voz do Brasil, tudo isso envolto por aquelas luzes amarelas de 60 watts.
O velho quase sempre ensimesmado, respondia com resmungos indecifráveis meu olá tímido. Passava sua rua veloz, com a lista de compras fresca na cabeça, mas guardava sempre espaço às divagações a cerca do que ele pensava, ali, quase sempre com a mesma feição. Era uma rua bonita: de um lado, grandes montes verdes, a mata atlântica respirando sob um céu sempre cheio de nuvens; do outro uma quadra inteira com casas ainda por construir, dando a ideia de que ali, naquele trecho, o tempo havia realmente deixado de passar.
A verdade é que, não sabia absolutamente nada sobre o ocorrido. Estava recheado de imagens desconexas. E fazia minha própria leitura, como é de todo ser humano. A morte sempre teve um gosto estranho, desconhecido e completamente fascinante pra mim. Bem, eu poderia esperar, procurar alguém, saber da verdade pura e cristalina. Mas preferi deixar sua lembrança assim, sem rosto certo, barrenta. Como as peças sobre a mesa, desconexas. Um tarô sem significado. O velho continuará sentado, com sua estável feição mágica, e eu continuarei passando apressado eternamente por aquela rua.

Rafael Elfe.