28.10.06

Patológico

Patológico

Dilacerar-te é um possível caminho,
Mutilar-te em prazer e obtemperar
Às tuas lágrimas a me implorar
Por um beijo, ao teu sangue cor de vinho...

Desprezar-te inteira já não me ocorre;
Os olhos, em expressão de cansaço,
Devo guardar e teu lindo cabaço
Arrancar, em meio ao esperma que escorre...

Não te desesperes, meu beija-flor,
A todo ódio corresponde um amor -
Deixarei-te uma asa para voar!

Não chores, anjinho! Não mais tens paz?
Não te agrada meu carinho mordaz?
Mas... deixei-te uma perna pra mancar !?

(Afonso Nives, em 24 de novembro de 1997)

26.10.06

livretos III

Viver e Devir


A sua alopração é previsível, meu caro.

O seu desespero era esperado.

A trajetória parabólica que seus braços fazem

Enquanto você se debate,

Submerso nas suas mais úmidas dúvidas,

Do estado mais vulnerável do seu ser –

Alguém já pensou nela.

O que você se pergunta

Está no script que te entregaram, seu nome

[ no campo “nome”

O volume de água que você chora

Já foi calculado antes.


E aí você vive sua primeira transa

(A redenção absurda do sexo),

Perde pela primeira vez um parente próximo,

Chora a primeira vez que te rejeitam,

Vê o sol se pôr a dois,

Interpreta as coisas, fica se perguntando

A validade do que foi e do por vir.


Dorme com um barulho desses, irmão.


(Isaac Frederico – 15 de junho de 2003)

22.10.06

O Eleito

O Eleito

À memória de Pedro Lermann.

Homens atravessados

Servos de seus destinos

Células orgânicas

Cujo Macro-organismo utiliza como veículo

E instrumento de suas realizações e fenômenos.


Vêm à tona através destes tipos

Manifestações fundamentais de humanidade

Modelos

Arquétipos.


Um caminho sempre alheio às suas escolhas

Um horizonte nunca dantes eleito

Uma história revisitada, legítima.


Seu naufrágio constante

Espalha seus escombros

Seu renascer infame

Exibe sinais ansiosos e marcas frontais de choques.


Deixemos um resto de paz aos eleitos

Que possam soçobrar e sofrer angústias

Sem que seus olhos visem o chão.


O desterro – espírito – o aguarda, é certo.

Tem meus argumentos e atitudes contigo.

20.10.06

Renata Dantas

Conheci a Renata em um carnaval, em São Luís do Paraitinga; na época eu não sabia que ela escrevia - e profissionalmente, tendo inclusive co-escrito um livro sobre a experiência do Araguaia.
Os poucos textos que recebi da Renata recentemente me trouxeram a agradável surpresa, em termos literários, de sua prosa poética ou - como hei de dizer? É literalmente isso, é prosa, mas de períodos curtos, finamente fantasiados com o brilho da poesia.
Os textos, de extensão também curta, são um convite muito prazeroso a uma leitura de pouca dificuldade e grande sabor.

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Soledade

Soledade era a preguiça em pessoa. Morava nos fios de baba do travesseiro. Nas remelas dos olhos. Em boa parte das sujeiras nos banheiros. Conseguia acompanhar cada passo da digestão de uma mosca. Desde a ingestão ao regorgitamento. A paciência era apenas ressaltada pela sua preguiça de viver. Até a vida desistiu dela.

Um dia conheceu Carlitos. Um assaltante latino. De tanta preguiça de reagir aquela cena toda, foi levada como o próprio objeto de furto. Era o vaso mais valioso de Carlitos, aquele que nenhuma flor poderia ocupar. Viveu durante anos naquele ambiente, mais decorando do que se utilizando dele. Até que Carlitos caiu na tentação. Acabou por levar um outro vaso para a varanda. Não durou dois dias. O vaso foi encontrado aberto a machadadas. As mãos de Soledade sangravam. Carlitos viu o amor pela primeira vez e nunca mais esqueceu aquele rosto. Seus olhos caídos, sua boca entreaberta e um corpo de cinquenta e seis quilos dividido ao meio na sala.

Carlitos morreu três anos depois de um assalto mal calculado. Os dias de vaso acabaram para Soledade, que acabou trabalhando num velho cabaré da cidade, cujo nome trazia as iniciais de Eleanor Rigby. "All the lonely people, where do they all come from?". De vasos.

18.10.06

Portão de Madeira - William Galdino

Do último livreto do William Galdino - Sem Persona - o poema-conto Portão de Madeira, cujo prisma nostálgico e dolorido me trouxe à tona algumas memórias e, me incitou a refletir sobre a proximidade entre a textura das lembrança e a dos sonhos, o material de que são feitos, por assim dizer.
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Portão de Madeira

À memória de Márcia

As borboletas pairavam no peito,
roçando as asas na quina do meu coração.
As bonecas de louça tinham o corpo de pano.
E os homens de fogo tentavam nos ensinar a nadar.
Até pareciam espertos,
mas era a praia dos bobos.
Onde pela primeira vez vislumbrei a brancura do teu seio.

Catarina tinha nome de princesa, e era tratada como tal,
pois não havia em minha rua,
menino que não recebesse os seus carinhos.
Um dia lhe fiz um poema tão bonito que nem consegui entregar,
é que o reli tantas vezes que o papel esfarelou.
Então resolvi escrever um poema sem papel e sem palavras.
Juntei um bocado de sorrisos e acerolas, e pus em sua janela,
ela gostou tanto que me prometeu fidelidade.
Eu quase aceitei, mas pensei bem,
pensei no Pedro, no Marcelo, no Canela...
E disse a ela:
– É melhor não, felicidade só minha?
Tinha que ser também dos meus irmãos.
E assim seguimos todos nós, felizes e cúmplices.

Até o dia em que ao bater às portas do castelinho ela não apareceu.
Havia partido sem deixar aviso
E aquela tarde pareceu sensibilizar-se com a nossa dor.
Fez silêncio.
Não houve pássaro que cantasse
E sequer uma árvore ventou.

16.10.06

Casa boa

Do reino cor-de-rosa do afeto recebo mais um pequeno lote de poesias da Luísa Müller - figura já presente, nos primórdios deste blog - e que molha sua pena num habilidoso e interessante trato com as palavras, além da carga sempre grande de sentimento, em geral leve de se ler.
Publico "Casa boa", desses novos, que me fizeram jubilar pela multiplicidade dos estilos de poesia abordados aqui no Presença.
Obrigado Luísa !

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Casa boa

Casa boa
branca
casa da gente
casada sente
a mulher
no meu peito
na mente
que voa no sonho
da casa branca
da vida boa.
Casa contigo
a mulher do meu peito
no sonho da casa branca
da vida boa
na casa da gente.

13.10.06

Afonso Nives

Tive a oportunidade de conhecer o Afonso Nives em um encontro internacional de poetas, em Orão. Egresso da intelectualidade branca da África do Sul, o poeta de 52 anos embarcou faz muito numa onda peristáltica de agressão inapelável e franca aos seus fantasmas.
Tendo visto holocaustos ao longo do apartheid sul-africano, Afonso Nives teve a peculiar reação de usar a poesia para agredir, tentar mutilar indelevelmente os "monstros insensíveis" da insensatez humana.
A agressão traz agressão, e assim navega o barco anti-poético do velho pirata - batendo e apanhando num mar casca-grossa de rebeldia senil.
Um caminho controverso, mas muito autêntico, conforme nos atesta a poesia "A moeda do ser".

A moeda do ser

O crápula ajeita o fraque
E sorri o maior escárnio de que é capaz:
Somos nós !


… somos todos pulhas
Tripudiando do inimigo caído
Ou sendo por ele trucidado,
Dependendo do momento.


Somos todos afeto
E infâmia
Ao mesmo tempo – e vê:
Os dois lados
Da moeda do ser.

11.10.06

livretos


Inverno de 2003 - Rituais de Ver e Olhar.
Compilação de algumas poesias minhas feita por Isaac e Rafael Fafito Saraiva. O excelente projeto gráfico deste último, surpreendeu na época, não só pela refinada técnica e criatividade, mas por atingir o cerne da temática reinante entre os poemas.

Nos próximos dias, pretendo postar imagens de todos os livretos que lançamos, em parceria e individualmente, até hoje; tão somente porque quero registrar esse caminho ilustrando algumas fotos do seu percurso.

Até!

Feito de Calma

Por um mundo mais preguiçoso e elaborado.
Tempo para as diferenças, boas pessoas e outras esquisitices.
Entropia!

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Feito de calma

Pede por um cometa que chame a atenção
Desvie o foco dos olhares
E deixe espaço para a serena solidão
A companhia da tarde
A membrana do silêncio
O vir a ser da luz se esvaindo
A lua – suspensa – lívida, insana.

Os sentidos exigem paz
Mas onde?
Tão dramática essa nova aurora
Veloz
Ponteiros, livros, conselhos...
Todos sabendo tanto, falando tanto
Eu simples demais

Alguém pensou o volume do sol
Mediu a distância
Pensou todas as variantes...
E o cometa não passa.

Será que cercar e demolir de vez as torres
Atropelar o papa
Incendiar a indústria...
Não, não.
Não!

Sem mais chutes no fígado, já cansado.
Uma flor, pode ser que de novo, fure o asfalto.

Honestamente
Não conheço outra maneira de ser que esta
Coisa confusa
E sem pressa.

Vinicius Perenha 10 de outubro de 2006.

9.10.06

o guichê

O Guichê

I

A lei definiu o ponto
Conceituou a vírgula
Racionou o riso
E amparou em sua miséria
A pena.

A lei desativou o entendimento amigável
E demarcou todas as fronteiras
Encomendou uniformes
E numerou o espaldar das cadeiras.

A lei aboliu a diferença entre honesto e legítimo.

E eu aqui, pensei:
Deus me livre da lei
Deus me livre dos homens da lei
Deus me livre da lei de deus
Deus me livre dos homens da lei de deus.

II

Eu achando que podia burlar o código
E deixar de quebrar pedras
Fiquei agarrado a uns pequenos versinhos
No fim do corredor matutando...

Um jeito de abrir a porta e sair sem discussão
Apagar as luzes, até!
Somente.

O oficial avisa – feliz – que o poema em três vias
Com cópia para a divisão dos revisores
Deve ser encaminhado à associação antes de...

De cá logo meu maldito macacão!!


Vinicius perenha – 09 de outubro de 2006.

6.10.06

Beco do Rato

Estivemos anteontem no Beco do Rato, na Glória, a fim de conferir alguns dos bons poetas independentes que se apresentam no Ratos Di Versos (nome do evento), bem como distribuir algumas cópias do "Absinto".
Também aproveitei pra lançar meu novo livreto, o "Lanterna mágica", com 12 poesias novas.
O ambiente estava bem legal, presentes poetas conhecidos do beco, como o sóbrio Pedro Lage e o imponente Flávio Nascimento, experientes trovadores com já mais de 20 anos de estrada.
O evento rola às quarta-feiras, quinzenalmente, sendo o próximo em 18 de outubro!

Ilê !

2.10.06

Mundo real

De um novo lote de poesias do Leo, me chegou "Mundo real". Os novos tomos que me chegaram às mãos, cada um com cerca de 6 poemas, indicam uma mudança nas recentes composições, até mesmo de um lote em relação a outro.
Os novos poemas continuam (trans)pirando sensibilidade, ainda um pouco subjetiva mas definitivamente mais certeira, mais anelante e mesmo pungente, pelo aprimoramento estrutural em conseguir literarizar com mais perfeição o conhecido embate "fantasia" vs "real".
Pessoalmente tenho me deleitado com estes novos lotes, que me trouxeram grande proveito e prazer em sua leitura.

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Mundo real

O sol de sempre é gasto
E a chuva também desgasta
Caiu aqui perto de mim
No Mundo que insiste em viver

Eu oro para arrefecer a dor
De ter a impressão que passo
Vou embora daqui em breve
E o Mundo perdura até hoje

Olha o que vai acontecendo !
Vida e morte
Não importa quem vêm
Do Mundo é o cenário

Medos de nada que existe
Desiste de você agora
Senti que o canto soou
O tempo no Mundo não demora

E eu que me achei o Mundo...
Junto do corpo ainda permaneço
Desço descalço de medo
Para sentir que estou no Mundo

Só sinto que existo se sinto
Acalma por hora
Dorme um pouco
O Mundo vai continuar

(Leonardo Schuery, em 29 de junho de 2006)