3.9.11

Ao amigo em desassossego

- Essa tosse ainda te mata.
Deixando sempre pr'amanhã.
- Os anos vieram. Quem diria?
E quando não der mais; pode ser cicuta, chumbinho, uma quantidade excessiva de pó, a cabeça dentro do forno . Revólver e corte no pulso não, sangue demais.
E o negócio é correr pra chegar. Ter uma boa desculpa pro atraso, e o estoque já anda escasso. São batidas na porta gelando o corpo, o susto quando o telefone toca. O bom-dia e o sorriso já saindo aos trancos. O cansaço e aquela vontade de parar e deitar-se sobre a calçada.
A meia-vida , não, muito menos que isso. Tuas mãos atrofiando, um décimo de homem, já não sente o chão. O sono suarento. De tempos em tempos alguma coisa lá no fundo, que vem de outras eras, de um ser ainda primário , antes da fala, de pele curtida ao sol e pisadas fundas sobre a relva, de cada coisa no seu lugar, de não se diferenciar, comunhão com os dias. Instinto, cheiro, sabor , reconhecimento das coisas, mas dura pouco , se dissipa ,vira névoa, ainda tenta agarrar, mas já se foi...Estás de volta, só, com essas sensações ainda vivas, não sabe se sonho, se memória, e as palavras não alcançam, tenta e sente se distanciar, e novamente se perde. Já é o sol de agora, do que não se adia, do apito da fábrica, da buzina incessante, do zunir dos teus tímpanos exaustos, do teu irmão morrendo endividado em algum cu de mundo. E você corre , finge que é empurrado, segue o bonde, engrossa o coro, se enfia na manada.
- Vai , pega, pega. Corre-cão-patético tentando morder o próprio rabo.
Teu choro sem ouvidos, teu ontem de amarras, aceitação do que é ralo e embaçado. A nau sem rumo, o rodopio febril. O tombo seco.
E estarei lá, mas não para gargalhar e te fazer corar, ser mais um pra te chutar quando estiver caído, te estenderei a mão para que se ponha de pé e volte a caminhar ao meu lado. Não terá que dizer nada , e saberá disso.


André Luis Pontes, sem data.