28.12.06

Renata Dantas

Por causa de alguns problemas que a Renata teve para postar seu texto, me foi concedida a honra de publicar mais uma pérola de sua autoria.
À espera

Ela só queria que ele aparecesse. Não queria beijo ardente. Nem pedido de casamento. Nem casal de filhos. Nem casa de praia em Angra. Só queria que ele aparecesse. Afinal de contas, havia estampado vestido novo. Salto alto nos pés. Esmalte rubro nas unhas. Batom carmim tatuado na boca. Cabelos caídos displicentes sobre os ombros nus. Seria muita desfeita...
Sentada no bar. Sozinha. Adornada com lâminas provenientes do ventrículo esquerdo, escolheu a meia sombra. Para livrar-se da desagradável sensação de que um dia sentiria o odor forte de enxofre e o estalido dos relhos estridentes do inferno.

Com um dedo, ordenou cerveja. Com dois, pediu cigarro ao rapaz na mesa ao lado. Nem fumava, mas ajudava a passar o tempo. "Garçom, outra cerveja, por favor!". E assim ela ficou durante algumas horas. Pedindo cerveja ao garçom, cigarro ao rapaz da mesa ao lado.

O pôr do sol ansioso começou a se espalhar. Banhou-se de crepúsculo para ter a tez cor de cobre e a boca malignamente em chamas. Mas ela sabia que devia ir. Já estava sem os sapatos. A roupa tinha sido colorida com a cerveja. O batom estava borrado. As unhas vermelhas, ruídas. Ele não viera – nem a passos curtos e lentos.
Voltou pra casa querendo quebrar o relógio. Queimar o calendário. Era seu aniversário. Ela tinha tanto. Ela teria. Ela teve um ter de haver havido e sonhar ávido. E ele havia passado por suas veias de poucas hemácias com tanta força que ela ainda sentia a fraqueza da falta do sangue jorrado.
Na manhã seguinte, acordou rápido, embevecida. Não fosse a esquina, teria tido um sono de paz imaculada. Mas sorteou ressaca das grandes. Decidiu comprar o jornal. "Sempre tem alguém que teve uma noite pior que a sua". Foi até a banca, pagou o do dia e uma carteira de cigarros. O jornaleiro: "Moça, cigarro mata". "Não" – disse ela - "o que mata é esperar".

24.12.06

Ar

Ar

(Suspiro)

(Suspiro)

O sopro boreal principia
O ataque medular ao meu controle:
O aluvião de memórias
Faz transbordar o copo –
E sento
E escrevo
E suspiro…

Tanto quanto água
Sou ar – ou antes
Não sou sem ar,
O éter da Terra,
O nada substante,
Laje do Reino dos Céus.

Decúbito em seu berço,
Desejaria voar,
Deambular livre
Das terrenas torturas,
Ingravitar
Por saber-me atravessado
De ar.

Os brônquios agradecidos…
As nuvens dos sonhos…
As brisas cisplatinas –
O aroma !

E desde o marco zero
A espera pelo retiro,
O acerto final
E o último… suspiro.

(Isaac Frederico, em 11 de dezembro de 2006)

23.12.06

Natureza

Os braços abertos num rodopio,
tentam colher a realidade.
O ácido da amada corroeu meu equilíbrio.
O orgulho trincou me as lágrimas.
E tudo na tarde é um quase ser,
um quase conseguir.
Tentativa vã de decifrar angústias.
Uma página lembrada de Rilke.
Uma vontade assassinada.
Abandono à inércia,
e salto na inconstância dos dias.
Um beijo na boca da ironia
(ela ainda consegue nos salvar).
Explode uma risada.
Humano,
tolamente humano.

Março de 2004.

16.12.06

Anatomia de um conflito


Que posso eu esperar,


Se

Deste teu olhar oblíquo e dissimulado –

Mal ancorado entre o riso e esta

Seriíssima ruga –

Cuja ranhura mais me prende que assusta,

Cujo vazio mais me instiga que envolve,

Não prevejo o que vai roubar-me;


Se

Ao preencher-te tenho a plácida

Ciência de que o mosaico que formarão as palavras

Será a prova de teu crime hediondo.

E, por fim,

Essa será parte tão primitiva de mim

Que me livrar da culpa provocará um doloroso remorso?


Que posso eu dizer,


Se

Tuas artimanhas levam a forma do meu cinismo;

E teu cinismo o benefício da minha angústia;

E tua angústia o receio pelo meu reinado;

E teu reinado a indiferença pela minha alma;


Se

O tumulto dos meus pensamentos

Enlaça tão bem o seu corpo;

E minha pólvora, ao revestir-se da tua brancura,

Explode naturalmente a muralha

Do mais medíocre entre os meus temores?


Que posso eu, doravante, considerar exclusivamente meu,


Se

Neste duelo no qual te encaro e me desmorono

Naufrago sempre junto a ti;

E renasço tão outro

que não sei onde termino eu e onde começas tu;


Se

Meu mundo tece as sombras que rabisco sobre teu relevo

E teu relevo ilumina o breu de onde saem esses seres

Híbridos, pluriformes;

Fotografias infiéis das desavenças e harmonias

Que tivemos,


Nós,

Poeta e papel.

Amotinados de tão parcas possibilidades?


(Vinicius Perenha – dezembro de 2006)

15.12.06

Crônico

Melancia é água,

Lápis é carvão,

Balão é ar,

Praia é areia
Com mar, que é vida,

Papel é árvore,

Ninho é cria,

Sono é sonho,

Circo é fantasia.


Eu sou amor de epidemia,
Crônico por você –

Que é poesia.



(Isaac Frederico, em 10 de dezembro de 2006)

12.12.06

Rafael "Grego"

Já apresentei diversas vezes a poesia do Grego aqui - ainda assim não me contenho de escrever algumas poucas palavras quando posto uma poesia sua.
Bebendo na fonte camoniana de não separar quartetos e tercetos, Grego mete um soneto alucinante atrás do outro, revirando sensações nem sempre floridas.
Vai aqui um antigo, inflamável.

_________________________________________


NO VENTRE DO VERÃO

No ventre do verão sem calma ou vento,
não tive a quem gritar. O sol queimante,
o suor, a febre, o espasmo delirante
secava em todo peito todo intento.
Era Dezembro, o mês do fingimento.
As ruas eu cruzava em pranto andante,
espremido entre a massa e o cru cimento,
sem ninguém que me ouvisse o grito arfante.
Em meio à gente tanta, solitário,
no ventre do verão incinerário
queimava os pés no solo e a pele no ar.
E em todos os rostos um sorriso,
tão belo, tão bonito e tão preciso
com prazo até Janeiro pra pagar.

(Rafael Huguenin, desconheço a data...)

10.12.06

Rafael Elfe

Ercília, minha estrela

Eu que diria de tuas falas esmaecidas
Mil chuvas cobrindo na janela à vista cinza
Eu que diria das manhãs voltando da escola
E em tua boca fina o cigarro pendurado,
fantasmas na fumaça - miasmas
E minha mãe à milhas dali, num escritório fundo.

Que diria de tuas roupas, a fossa no quintal
Eu tive um castelo aos pés do muro
Funeral de um playmobil e duas bolas de gude.
O que dirão delas?

O que diria teus cabelos sob o lenço, arredios?
Os guaranis berravam em teus olhos!
Índios de palavras tão doces quanto tuas ordens;
E eu me perdia com a vizinha atrás da casa...

À tardinha o café tão preto e solitário
e o pão sem manteiga...
O que diria desse gosto?
Era desgosto, e gosto afincados
Trancafiava tuas horas em mim, ai vó!
Eles sabem o que eu sinto, mas não me entendem.
O que diriam de você e suas velhas coisas
em suas velhas caixas sobre o armário de mogno

antigo?
Eles não sabem o que você sentiu àquela noite
vendo a casa ir abaixo... eles souberam nos jornais.
Souberam na patrulha do rádio, que ouvias pela

casa...
O vizinho de cima, Clóvis, o diabo em pele...
ateara fogo ao corpo, e esfaqueara a mulher...
Hoje os filhos são pastores - cheiro de carne humana

queimando.
As peles sobre o cimento riscado da cisterna.
Um punhal quase acerta o Zé.
Eu me lembro...

E o medo das noites de estrelas?
Algum ovni pousara naquele morro... à esquerda.
Enquanto, imóveis, dois móveis, sofás
dentro da sala pequena
em paredes pintadas de cal e xadrez azul,
gritavam a agonia de uma vida cheia de ínfimas

alegrias.

Lembro da moeda que engoli, ou bala soft?
Quanta falta de ar vó!
A senhora ainda me ouve?
E o telhado?
Ainda florindo o negro musgo?
Passei a infância ali de cima,
observando o mundo.
- Rafael!! Vem tomar banho! - e eu descia por uma

madeira oca e cheia de pregos...

Que diriam de mim vó?
A senhora, Ercília, nome tão lindo!
- "Bença" vó?
- Deus te abençoe...

Dá pra ser?

A S...

Dá pra sermos naturais?
Ou precisamos registrar em cartório?
Só quero um abraço,
Uma encostada, uma troca
De amor físico, permitido,
De fluir per si.

Dá pra ser?
Um curtir sem faina,
Sem-vergonha de bom,
Com respeito e fácil,
Satisfeitor,
Sem a culpa portátil
Do ter que ?
Pode ser?

Dá pra ser delícia
De 500ml
Sem a McSuplícia
Da culpa que repele?
Eu só preciso de você
O quanto você precisa de mim,
Você tão flor,
Tão linda, tão tesão-nato,
Eu tão seu, tão vai, tão vem,
Quase lácteo
Em minhas intenções,
Quase lácteo, quase lácteo, quase lá….
Aaaaaah !!!!

Dá pra ser, bebê?
Um abraço fraterno,
Um toque mútuo,
Um seio materno
Ou melhor,
Ambos os seios maternos,
Quase pintados, de tão perfeitos –
Não tenha receio!
Dá pra ser?

Dá pra me notar,
Eu tão louco por um abraço,
Um conquistador barato
Mas honesto
E louco de amor … ?

Dá pra ser?
Ou precisa de escrivão?
Pode ser o sim
Ao invés do não … ?

(Isaac Frederico, em 10 de dezembro de 2006)

8.12.06

hégira

salve presença!
este postema não é de ler,
é de ver.
espero que curtam.
abraço-abraço,
rafael.
_ _ _

hégira, 2006.
impressão eletrônica sobre papel,
1,60x1,05 m.

7.12.06

Mercadores da peste

colegas,

a impotência orgástica é a incapacidade de sentir troca no tento sexual.
os frustrados são rijos, mecânicos,
invejosos, sentem necessidade de punir
e, mais importante, de seguir as regras, necessárias para suas vidas inertes.
necessitam que um líder lhes diga o que se pode ou não fazer.

a impotência orgástica é oriunda de uma profunda repressão, quando crianças,
de sua sexualidade, de seus gestos naturais, de seu choro e sua euforia.

a descarga bioelétrica fica impedida pelo encouraçamento muscular oriundo disso.
o impedimento do fluxo da carga bioelétrica acarreta frustração.

_________________________

Mercadores da peste

Mercadores da peste! Seus versículos
Aguardam o messias que revogue
A condição de carcaça no açougue
De seus vis corpos, rijos. Os testículos

Adiposos de toda autoridade
Lambem, em afã de uma direção
Que lhes diga quando acatar ou não
As regras de que têm necessidade.

A inércia de seu tento sexual
Lhes imprime um ódio seminal
Ao curso saudável das vidas sãs

E armados de suas fainas moralistas
(As quais pintam com tintas progressistas)
Vivem, flácidos, existências vãs.


(Isaac Frederico, em 25 de novembro de 2006)

5.12.06

Reflexões do Interior

Caros,

posto aqui mais uma poesia do Leonardo Schuery, cujos escritos retratam, entre outros, o embate tão presente da fantasia com o real, que é responsável por desdobramentos dos mais intensos na personalidade de cada um de nós.
Muito desse embate se dá nas relações sensuais das pessoas (amigos(as), namorados(as), parentes) e os escritos do Leo redimem na medida em que nos fornecem pistas e análises para compreender melhor como se processa a coisa.
"Os sonhos que consomem a Vida..."


Reflexões do Interior

De acordo estamos então
Você olha, eu vou e você diz não
O roteiro preparado
Personagens etéreos aspirados pelo ar cansado
Vai dizer que não ?
No adágio do meu passo, a sua inquietude
Fragmentando a realidade
E constituindo nada, nada não
É a dialética tácita em vão
Vão de vazio mesmo
Desprovido de qualquer ão
Vai de quê agora ?
A tua diversidade insípida
Manifestos em gestos infestos
Que refletem meu vazio
Nesga de Vida do interior
Pródigos em expressões tépidas de amor
Mas não tem nada não
A tergiversação é consentida
Sustenta os sonhos que consomem a Vida
Mitigando a dor do real
E não há ubiquação alguma
Suma !
Eu falo para dentro.

(Leonardo Schuery, em 22 de maio de 2006)

4.12.06

Da vida

Entrou.

Fechou a porta atrás de si. Inebriou-se com o cheirando a guardado que reinava no cômodo antigo. Ensaiou passos trôpegos em direção à cama. Sentou-se delicada na beira do velho móvel de madeira escura. Como que não querendo despertar aquela que ali repousava.

No centro do colchão gasto, aquele peso afundava a espuma já sem força. Pôs suas mãos rosadas sobre a outra pele – pálida como a morte. Observou indiferente as unhas amareladas e compridas. O cabelo gasto. A boca enrugada e sem dentes. Os olhos descansando cerrados. As mãos unidas em forma de oração. A pele flácida depois dos anos. Pouco tinham se visto. Mas agora se sabiam mudas. Íntimas no silêncio imperativo. Atravessadas pelo fio de vida.

Não proferiu sentimento. Tomou o estilete na mão. Despedaçou a roupa que cobria o corpo de sua companhia com uma força violenta. Não rasgou uma lágrima sequer. Jogou fora os trapos impregnados pela naftalina. Abandonou a lâmina. Pulsou vida para brincar de boneca com a tépida presença. Com seu toque de sangue quente, revestiu aquele peito nu e vazio. A camisa era aquela que esperou as grandes ocasiões que nunca vieram. Vestiu, uma por uma, as pernas frias dentro da calça alva. E os pés magros, um por um, dentro das meias. Fez alinhados os fios e faceira as maçãs.

Não cogitou a dor. Ou o remorso por não supor a dor. Desaguou em sequidão. Sobrava ainda um pouco de café. Restavam alguns cigarros. A vela do Santo que não tinha sido acesa. E uma sensação inóspita que não cabia no quarto apertado. Logo depois ligou para a funerária.

Rio, 04/12/2006.

2.12.06

Descanso

Descanso

Dia de chuva fina,
chatinha que não quer passar.
Vou saltando poças.
Olhando as pernas grossas
da comedora de pastel
Sentindo uma proximidade maior das coisas
Reparando o olhar dos passantes encasacados
que nesses dias frios parecem mais frágeis
mais humanos.
Caminho em calma
num dia
em que nenhum xingamento me alteraria o humor.
Calmo
dentro da calma da chuva preguiçosa.
E nesta serenidade cada vez mais rara
em meio a tanto prédio e passo rápido
Ouço um ; - Boa tarde meu jovem.
Outra vez , mais acentuado
- Boa tarde meu jovem.
E reparo que se dirige a mim
Olho pro lado
e vejo o guardador de carros dizer mais uma vez
-Boa tarde meu jovem.
Retribuo o sorriso e respondo
-Boa tarde.



Julho de 2005.

rafael saraiva

rafael saraiva sou eu.
meu forte não é a rima,
mas prometo que vou me esforçar.
como entrei por último, posso ficar no gol.
honrado com o presente-convite,
por hora vou de:

espiral
sonho helicoidal
de rima ritual
primogênito desafio
que estoura ao infinito
a sinopse do tudo não pára
é a vida em dois fios
que corre e corre e voa
mas volta
na hipnótica revolução
do áureo sempre-pra-sempre
labirinto espiral

rio, novembro ‘06
_ _ _


1.12.06

A Arte do Iludir-se

________________________________

Já temos um time: quatro na linha e um no gol.


Bem-vindo mermão.

________________________________


A Arte do Iludir-se



A maior invenção do homem

É a imaginação.

Imagine o mundo sem

Anarquistas

Separatistas

Imperialistas

Nacionalistas

Franciscanos - niilistas

Marxistas - freudianos

E

Seus aforismos

Seus anarquismos

Separatismos

Imperialismos

Nacionalismos

Niilismos

E

Os demais exercícios

Dessa façanha.


(vinicius perenha - novembro de 2006)

28.11.06

Presságio ultra-romântico

muito bom ter encontrado estas poesias aqui. tem coisas muito boas circulando, na boa.
prossigo numa aproximação mais

Presságio ultra-romântico

Recolho-me frente à chama insuficiente
E arisca desta vela, o lúmen granzoal,
Imperador no atro arcabouço incomburente
Do asmático porão que me acolhe –e, demente,
Seco a testa, de uma febre insurrecional.

Lanço-me como um parvo ao tento irracional
De exilar de uma vez por todas a moente
Dúvida que me janta e noto, inaugural,
Empurrando-me, ultrajante, ao ato final,
A chuva que se precipita, consistente.

Que sangue espirro em tosse? Estou tuberculoso?
Que peste calcina minha saúde errática?
Que escrófula mina-me a defesa linfática
E traduz-se neste esforço assaz ominoso?

Que já tenho em simples respiração apática...
Revolto-me, amarguro-me em ódio nodoso
Inconformo mas, como um presságio tinhoso,
A vela – horror – responde: se apaga, enigmática.

Desespero-me ao inequívoco sinal,
Segundos grávidos de silêncio latente
E eis que o fogo, súbito, revive contente,
Ígneo permisso prum respiro inda normal.


(Recife, 27 de novembro de 2006)

27.11.06

Nuvens

“1.1 O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas.”

(L. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus)


Distraído

Sob o peso do firmamento,

Vi um raio solar iluminar meus olhos.

A perspectiva, em miríades de imagens,

Abandonou a lógica.


Absorto,

Em tal névoa acolhido,

Procurei nas nuvens por algo palpável;

Mas eram somente nuvens.

Abandonei, então, a sintaxe.


A realidade semântica do possível

Resguarda meu mundo da loucura.


(Vinicius Perenha, 24 de novembro, 2006)

25.11.06

Rafael Elfe

Rafael é um amigo de longas datas, com quem compartilhei muitas afinidades literárias e musicais , além de alguns porres e tardes ao violão, entoando canções punks contra os domingos tediosos de nossas adolescências. Poeta de visões românticas e carregado de imagens simbolistas, caminha junto as palavras de Gullar e aos versos-visões de Rimbaud e Flávio Murrah, influências confessas, que enriquecem seu universo poético sem tirar o mérito de sua poesia, rica e segura pelos anos de constante criação e pelo inegável talento no trato com as palavras.


"Brioso Bocejo"
Geme o aquecedor
A casa, os prédios ao redor
Gemem as cadeiras solitárias na área
No fundo a alma geme junto, assim tão baixinho
E os segundos vão gemendo, passando...
Quem vê?
Enxergam fundo e vão urgindo em passos finos
Geme o cão na cozinha sob a cômoda de mogno
Os pratos gemendo de frio
A sopa na panela nem mais geme, ingerida fora, antes.
No estômago se espraia para do intestino germinar.
Fora da casa gemem as colunas de ar
O vento seco nos muros - pés de pixações
e passamos sem notar... ali grita um nome tremendo:
G E R M E S
facção do amor urbano,
irritavelmente abafado
vão indo atrás das colunas de ar - sulcos de luz
Antenas e sombras de vizinhos que na correria
subvertem a ordem,
e gemem sorrindo nos carros novos
Que inveja faz da glória um caminho?
Enquanto ela gemia, o mundo pairava exangüe
e ainda gemem:
pias,
manhãs brotando,
avenidas de tempo derretendo em relógios,
ali, aqui,
em cada ambulância estacionada - um silêncio,
assim gemia a alma bem no fundo, grosseiramente.
E ela nem percebia que n´um brioso bocejo,
sacolejava o mundo.


"Primeiro e último haicai"

Quando ela sonha
emudando a noite
varre as estrelas

24.11.06

Drika Duarte

Descobri os versos de Drika Duarte através da leitura de uma revista publicada pelos alunos do departamento de artes da UFRN. Além do papel como suporte para sua poesia, o palco também é morada para seus versos, através do Elegia e seus afluentes, grupo ceno-performático-poético-musical do qual Drika faz parte. O poema Deserto me laçou na primeira leitura, versos derramados numa queda de intensa musicalidade desaguando num deserto onde a consciência do passar do tempo se faz presente.


Deserto

Um espírito irrequieto
Tão tosco que ao cair no poço
Com olhos entreabertos
Encontra o pensamento admiravelmente belo.

Sorri, encantando as flores
Rasteja passos poucos
E pisa na delicadeza murcha
Com pés mortos de cansaço inventado.

Abram as cortinas
Que o fundo é mais lindo
Do que se imagina.

Enquanto consolam-se com meias palavras
Eu reescrevo a mesma velha página.

Busco alcançar a aura que escurece o sentimento.

A dor é não ser do tempo
E saber que ao passar morremos.

Eu deixo um pedaço meu
Cada vez que me derramo em verso,
Encontro o enleio certo:
O momento do fragmentado eu deserto.

23.11.06

Guto Leite II

O maior arranjo do mundo

Quando não tinha mais nada o que fazer, tomou todas as flores do mundo
e deu a ela. Certo que não lhe cabiam nos abraços cada begônia, lys,
bromélia, rosa, todas as outras vis. Ela soube ganhar o presente.
Retribuiu com beijo breve de mil gametas, fecundado, leve.
Este floresceu no peito infértil do jovem a tarde inteira
e só a noite pôde acalmar o unímpeto da semente.
No dia seguinte, logo de manhã, foi somente
esperando marcar a data que entrariam
no primeiro concurso. Só ela tinha
flores, afinal. Mas encontrou,
no mesmo arranjo: beijo,
outro homem, ela; e
desfez-se baixo,
muito baixo
como a
péta-
la.

21.11.06

Da Mediocridade

I

Ofereço-te um nu desespero

De viver

Se me puder despir a letargia da espera.


Espera tímida pelo momento certo

Espera flácida pelo espaço adequado.


Dadas as proporções mágicas entre possibilidades e realizações

O melhor deve ainda estar por vir.


Mas será este o tipo vil de otimismo

Enganador?

Será esta a sátira de um mote covarde

Encoberta por atitudes sensatas?

Ou ainda, o que me resta de diferença?


II

O cinismo artístico com que te ofereço

Mais esta falaz audácia

Deveria me ser cuspido de volta com a força de um rasgo na pele

Visto que te ofendo deliberadamente, leitor.


Mas por fim

Tuas fibras são frouxas

Serás amável

E gostarás – indiferente – de mim.


(vinicius perenha - 17 de novembro - 2006)

___________________________________________________

É um fato, camaradas do Presença: dos muitos motivos que consigo imaginar pra encher a cara num dia desses, a entrada de dois novos integrantes no blog é o melhor. Entoemos tal coro; celebremos!

à boemia presente, sempre presente.

20.11.06

Por uma nova pele



Outono
ou outubro
outro nada
outro tudo.
E voltarás
a teu quarto
só como sempre.
Outra noite
outro susto
ouvindo valsas
ousando um salto.
E serás o mesmo.
Outro grito
outra face
outro gesto ensaiado
outro amor não declarado.
Até quando?

Aos clássicos

As trovas que dardejo e já publico
Em carnação de outros mestres beberam,
Tuberculosas rimas que edifico
Às clássicas penas que já houveram.

Sois de minh´átona harpa o exemplo,
Poetas mil que a língua sublimaram !
Em vossas clássicas messes contemplo
Auroras que o vernáculo adornaram.

Lúdico Caeiro, real Redol,
O brilho de Pessoa! Tal o sol
Me acolhem, na leitura outonal

De suas letras - oh! mestre Cesário !
Saúdo-te o inefável relicário,
Em gentileza transgeracional !

(Isaac Frederico, em 20 de novembro de 2006)

18.11.06

Guto Leite

Como vem colocando em largo fluxo o Presença, poesia boa se encontra também na "calçada", ou seja, há excelente poesia independente sendo feita, em concomitância com o que é lançado nas prateleiras de mercado (tantas vezes também excelente, diga-se).

Outra singela prova disto me chegou com as poesias de Guto Leite;
em composições de caráter mais para o clássico que para o informal, os poemas que li do Guto oscilam entre um rebuscamento fero ("seria a poesia a arte de não conseguir se expressar?", pergunta ele, na busca pela expressão mais exata dentro do poema) e um imaginário bastante tangível e feliz, como nesta :

Em busca do amor mágico

Há um truque perdido
em cada romance.
Sou o menino atento,
de vistas na cartola,

na ânsia da piedade, do erro,
da linha transparente,
do despeito, do fundo falso
ou da marca de cola.

Por mais que os dedos do mágico
movam-se inocentes
no espaço entre o fracasso,
o engodo e a glória,

é certo que não erra,
já que se expõe
somente após o tempo necessário
de treino. Agora

(digo agora no comum, erradamente,
como qualquer instante
depois dos silvos e das palmas)
repito o que vi fora,

internamente, muitas vezes,
obsessivo, sem gesto, quase em transe,
mas logo no momento preciso
nada colabora.

A mágica insiste em soar
como um oboé cortante
e desafinado. Nunca me canso, porém.
Fixo meus olhos na cartola.

E recomeço.

Há um truque perdido
em cada romance.

16.11.06

Pedro Lermann II

Meu Anjo
para Ignez


Quando derrubaram a porta, seus olhos vidrados miravam o mar, no reflexo de um espelho que, estrategicamente posicionado frente à janela, iluminava nos matizes da chuva que descia, o corpo franzino do anjo.

Uma imagem orgânica da enseada, emoldurada pela melancolia do irreversível, inspirava a leveza de uma beleza pura; diferente da ordinária plasticidade fugaz que envolve as coisas consideradas belas no dia-a-dia.

A atmosfera parada, inacessível ao pranto e assombro dos curiosos vizinhos, fazia jus ao paradigma da eternidade e suscitava paradoxos inconcebíveis, perceptíveis somente à pele.

Ela morrera há dias e, no entanto, viveria ainda sua mortalha sobre pernas vacilantes por décadas. Seus netos a abraçariam inconscientes do mar que coube um dia naqueles olhos sempre transbordantes e tristes.

Ao fim de poucas horas ela levantou-se e serviu, claramente desejosa de que os invasores sumissem, café e bolo e explicou, calma, que José se fora.

Um deserto tomara o trono da enseada; seus olhos continuaram úmidos até o fim, porém sem jamais sorrir novamente.

(Pedro Lermann - 20 de março de 1972)

15.11.06

Pedro Lermann

Conheci a obra de Pedro Lermann através de seu filho, George.
Pedro havia falecido há poucos meses e durante a retirada de suas coisas da casa onde vivia sozinho há alguns anos, foram descobertos dois cadernos que, entre contos, crônicas, poesias e textos filosóficos, têm os registros de mais de duas décadas.

Sob a condição de manter ocultas sua origem e história, por assim dizer, tive a autorização de seu filho para tornar pública a obra.

Sob a égide de um passado questionável - do ponto de vista moral e legal - a escrita de Pedro é dura, apesar de elegante; com um traço carregado nos paradoxos e na livre expressão de suas idéias - talvez decorrentes da decisão de não deixar que seus escritos saíssem da gaveta - o velho derruba alguns dinossauros do pensamento coletivista. Segundo suas próprias palavras: "hipócrita, cínico e nocivo, se de direita; fraco e ganancioso sob a pele de revolucionário, se de esquerda".

Pedro Lermann faleceu aos sete dias de agosto deste ano, aos cinquenta e dois anos.

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Universalis post res

Estas cores,

que temerárias ousam saltar

e improvisar seu concerto.

Exibem-se.

Cavalgam belos demônios e

subjugam a indiferença.

Primavera!

Triunfa primeira e afasta

meu espírito arriscado.

Que afoito,

encanta-se entorpecido

e dobra-se ao infinito.

(Pedro Lermann – 13 de janeiro 1978).

14.11.06

Espaghetti a la Pecadora


Brasa, fervia os homens antes do fatal balde de água fria. Os deixava com um eterno nó na garganta e uma sutil corda no pescoço. Se olhava no espelho e via alguém que gostaria de ter conhecido um dia. Trazia marcas no peito e nos pulsos. Saía vestida com sua melhor roupa para pecar. Porque o vermelho se reserva em sua mais forte tonalidade para aqueles que vivem de entranhas. No açougue, apontava os corações. “Quero a tripa mesmo”. No bar, pedia sopa de arame farpado. Porque era dessas que gostava de arranhar.

Acontece que um dia conheceu um que gostava de socar. Ele pediu um cheiro. Ela olhou assim. Pediu um beijo. Ela fugiu sem traquejo. Pediu perdão. Ela disse não. Mas, em um impulso inconseqüente, cerrou os dentes. Fez bico e abriu arestas, mesmo que improváveis:
- O que você quer, afinal?
- Te descobrir. Até que teu frio me peça um abraço
Ele continuaria com perguntas para as respostas dela por um bom tempo, mas decidiu tentar outra vez. Pousou os seus naqueles olhos – e era preciso um verão inteiro para haver um eclipse naquele olhar. Arriscou:
- Você me pediu 24 horas, baby. Passou.

Ela abriu o coração e nele escreveu: “somente tráfego local”. Resolveu ligar o foda-se. “Ou melhor, o foda-me” - mais por diversão que por necessidade. E assim, sem A nem B, disse na lata:
- Quero dar pra você.

O vulcão chamado desejo não parava de fazer barulho. Mesmo vestida de sombra, ela lhe iluminava o dia. E pouco importava a luz, se ela estivesse acesa. Ela lhe lambia os ouvidos. Passeava sobre a sua carne nua, crua. E inventavam uma nova língua - para traduzir o que não se explica. Depois, ele desfalecia em um ato egoísta. Pequeno suicídio diário. Ela não. “Quando eu dormir, vai ser de uma vez só”. Era nessas horas, então, que ela lhe sussurrava pequenos segredos de fronha e travesseiro. Permaneciam segredos.

Mas, como num passe de mágica, a mágica passou. Meio hora de sumir. Porque havia certas coisas que ele não podia evitar. Sua canalhice, por exemplo. Não queria mais nenhuma das mulheres que a habitavam:
- Sua companhia me faz o mais solitário dos homens. Saltei em um vôo livre de você. As idéias me têm.
Chegou a inventar uma úlcera fortíssima. Porque doença traz um certo charme ao efêmero. Dá credibilidade. Destilou veneno e bebeu vinho. Descobriu-se murcho, insano e monstruosamente leviano. Com o coração dela na mão, disparou:
- Dona, esse aqui já era.

Só que o último beijo é sempre o começo de uma outra história. Ela não julgou. Tampouco negou redenção. Mirou na testa. Pum. Acertou no coração. Imediatamente apaixonou-se pelo cadáver. Romântica, a canibal começou sua refeição pelo coração. “Escrevo nas paredes o que você rascunhou na minha carne”. Só a dor é fiel.

Goodbyes são always badbyes.

(Renata Dantas. Rio, dia 1, mês 11, ano 2006)

13.11.06

Filho do Vir-a-ser

O raiar do sol,
As montanhas, imensas,
O verde vivo,
A vida simples.
Isto já é
O Reino dos Céus
Sobre a Terra.

Que caixotes e alarmes
Te impedem de ver isto,
Tu que já és
O Filho do Homem?

Que fainas e distrações?
Que insidiosas invenções?

Que rotinas e sirenes
Te impedem de ouvir
As músicas perenes
Oriundas do Devir?

(isaac frederico, 31 de outubro de 2005, publicada no livreto "Jesus, o Nazareno", parte IV do Acontecente)

11.11.06

Fogo

Ha!
É a língua de fogo no lombo velhos!

- Move!

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Fogo

Se danças liberto

E atravessas intrépido com tuas trovas

Esferas quaisquer que interponham

Tua individualidade e o mundo ao redor

Se curvas a cerviz

Percebe derrotas em tuas tentativas

Todas

E teus braços raspam já de leve o chão

Se tuas ações terminam então

Num interminável novo começo

E apesar de cansado sentes que não há como estacar

Vais desconfiar a certa altura

De que a origem de cada atitude

É o fogo que queima teus pés sem permitir

Que até que seja dado o último passo

Terás de continuar.


(vinicius perenha outubro de 2006)



10.11.06

Terra

Terra

A terra é a mais formosa das mulheres
Que devém
Que acontece
Sem vírgulas
Impontual em seu chamado
Porque a ela vamos todos

Tão quente quanto fria
Onilingüe
Crepuscular e auroreal
Tudo ao mesmo tempo
Inexorável em seu chamado
Sobre ela vamos todos

A terra munge seus filhos
Nós mungimos ela
Navalhamos-na
Recebemos a benção do sólido
Do chão
Que mesmo o chão é bênção
Só aos tolos o chão é derrota

A terra permite
Mas quando exige
Quererá teus átomos
Teus ossículos
Partidos ou não

A terra é gestação
Com teus ossículos
Digeridos se renova
E sabemos bem o que é
A renovação

Fovente
Graciosa
Mãe
A mãe raiz
A grande raiz em comum
A grande raiz.

A terra –
O eterno
Regressar.

(Isaac Frederico, em 14 de setembro de 2006)

8.11.06

O Bocejo do Amor

Difícil conseguir abarcar toda a magnitude da obra do Abdul nos posts esporádicos deste blog.
A despeito de o Abdul não ter lançado um livreto "oficial", tenho muitas de suas poesias, algumas das quais tentei musicar, outras que simplesmente pedi pra guardar.
É sem dúvida um dos meus nomes prediletos da "poesia independente", como já pude expressar aqui antes, e fica claro o por quê, mediante o contato com a clareza e intensidade de suas poesias, como expresso em "O Bocejo do Amor".
Presença!

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O Bocejo do Amor

Quando de repente um bocejo revela
a preocupação com a vida,
Indisposta sua alma reflete amarguras do amor.
É triste perder quem se ama,
muito mais perder o amor em si,
e perceber que após tantos meses o passado consumiu os dias
lentamente. Depositando na memória os dias felizes
que hoje nos machucam, e menos as tristezas
que nos tornaram solitários.
Não importa os amigos, a família ou o trabalho,
a solidão sobressalta em nossos sentimentos como um bocejo
que simplesmente nos sai pela boca.
Boca esta que não toca mais os lábios tanto desejados,
não beija mais o corpo um dia desvelado, e tenta agora
na nudez da esperança aquecer novamente o espírito cansado.
O ego que se refaz no futuro,
na força da imaginação esquece os bocejos e desperta os olhos
para um destino grandioso. Longe não do amor;
mas do desejo ingrato que nos faz assim tão distantes dos
primeiros dias da paixão.


(Felipe "Abdul" Sandin, em 14 de outubro de 2005)

7.11.06

Renata Dantas, parte 2

Dos gracejos que eu fazia. Dos bocejos que você me escondia. Das coisas lindas que você me dizia ao pé do ouvido. Dos mentolados, dos lascivos, dos destilados, dos requintados, dos sentimentos, dos sofrimentos. Era disso nossa vida.

Era tão grande a culpa do sentimento, que não se permitia viver aquela história. A gente pulava muro, corria dos compromissos, escondia as cicatrizes das dores, ria de lado, mas mantinha a idéia. Era doloroso. Mas era gostoso. Mas era doloroso.

Do texto que ele me escreveu, só lembro umas poucas letras. Eram suaves e ele tinha um jeito estranho de me mostrar as coisas. Mas eu gostava. Nunca consegui dizer isso, mas eu gostava.

Ele me mostrou um vinho. Eu lhe mostrei uma música. No final erámos vinho e música numa taça velha cheia de manchas de própolis. Sempre o improviso.


( Renata Dantas, título e data desconhecidos - talvez desnecessários... )

28.10.06

Patológico

Patológico

Dilacerar-te é um possível caminho,
Mutilar-te em prazer e obtemperar
Às tuas lágrimas a me implorar
Por um beijo, ao teu sangue cor de vinho...

Desprezar-te inteira já não me ocorre;
Os olhos, em expressão de cansaço,
Devo guardar e teu lindo cabaço
Arrancar, em meio ao esperma que escorre...

Não te desesperes, meu beija-flor,
A todo ódio corresponde um amor -
Deixarei-te uma asa para voar!

Não chores, anjinho! Não mais tens paz?
Não te agrada meu carinho mordaz?
Mas... deixei-te uma perna pra mancar !?

(Afonso Nives, em 24 de novembro de 1997)

26.10.06

livretos III

Viver e Devir


A sua alopração é previsível, meu caro.

O seu desespero era esperado.

A trajetória parabólica que seus braços fazem

Enquanto você se debate,

Submerso nas suas mais úmidas dúvidas,

Do estado mais vulnerável do seu ser –

Alguém já pensou nela.

O que você se pergunta

Está no script que te entregaram, seu nome

[ no campo “nome”

O volume de água que você chora

Já foi calculado antes.


E aí você vive sua primeira transa

(A redenção absurda do sexo),

Perde pela primeira vez um parente próximo,

Chora a primeira vez que te rejeitam,

Vê o sol se pôr a dois,

Interpreta as coisas, fica se perguntando

A validade do que foi e do por vir.


Dorme com um barulho desses, irmão.


(Isaac Frederico – 15 de junho de 2003)

22.10.06

O Eleito

O Eleito

À memória de Pedro Lermann.

Homens atravessados

Servos de seus destinos

Células orgânicas

Cujo Macro-organismo utiliza como veículo

E instrumento de suas realizações e fenômenos.


Vêm à tona através destes tipos

Manifestações fundamentais de humanidade

Modelos

Arquétipos.


Um caminho sempre alheio às suas escolhas

Um horizonte nunca dantes eleito

Uma história revisitada, legítima.


Seu naufrágio constante

Espalha seus escombros

Seu renascer infame

Exibe sinais ansiosos e marcas frontais de choques.


Deixemos um resto de paz aos eleitos

Que possam soçobrar e sofrer angústias

Sem que seus olhos visem o chão.


O desterro – espírito – o aguarda, é certo.

Tem meus argumentos e atitudes contigo.

20.10.06

Renata Dantas

Conheci a Renata em um carnaval, em São Luís do Paraitinga; na época eu não sabia que ela escrevia - e profissionalmente, tendo inclusive co-escrito um livro sobre a experiência do Araguaia.
Os poucos textos que recebi da Renata recentemente me trouxeram a agradável surpresa, em termos literários, de sua prosa poética ou - como hei de dizer? É literalmente isso, é prosa, mas de períodos curtos, finamente fantasiados com o brilho da poesia.
Os textos, de extensão também curta, são um convite muito prazeroso a uma leitura de pouca dificuldade e grande sabor.

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Soledade

Soledade era a preguiça em pessoa. Morava nos fios de baba do travesseiro. Nas remelas dos olhos. Em boa parte das sujeiras nos banheiros. Conseguia acompanhar cada passo da digestão de uma mosca. Desde a ingestão ao regorgitamento. A paciência era apenas ressaltada pela sua preguiça de viver. Até a vida desistiu dela.

Um dia conheceu Carlitos. Um assaltante latino. De tanta preguiça de reagir aquela cena toda, foi levada como o próprio objeto de furto. Era o vaso mais valioso de Carlitos, aquele que nenhuma flor poderia ocupar. Viveu durante anos naquele ambiente, mais decorando do que se utilizando dele. Até que Carlitos caiu na tentação. Acabou por levar um outro vaso para a varanda. Não durou dois dias. O vaso foi encontrado aberto a machadadas. As mãos de Soledade sangravam. Carlitos viu o amor pela primeira vez e nunca mais esqueceu aquele rosto. Seus olhos caídos, sua boca entreaberta e um corpo de cinquenta e seis quilos dividido ao meio na sala.

Carlitos morreu três anos depois de um assalto mal calculado. Os dias de vaso acabaram para Soledade, que acabou trabalhando num velho cabaré da cidade, cujo nome trazia as iniciais de Eleanor Rigby. "All the lonely people, where do they all come from?". De vasos.

18.10.06

Portão de Madeira - William Galdino

Do último livreto do William Galdino - Sem Persona - o poema-conto Portão de Madeira, cujo prisma nostálgico e dolorido me trouxe à tona algumas memórias e, me incitou a refletir sobre a proximidade entre a textura das lembrança e a dos sonhos, o material de que são feitos, por assim dizer.
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Portão de Madeira

À memória de Márcia

As borboletas pairavam no peito,
roçando as asas na quina do meu coração.
As bonecas de louça tinham o corpo de pano.
E os homens de fogo tentavam nos ensinar a nadar.
Até pareciam espertos,
mas era a praia dos bobos.
Onde pela primeira vez vislumbrei a brancura do teu seio.

Catarina tinha nome de princesa, e era tratada como tal,
pois não havia em minha rua,
menino que não recebesse os seus carinhos.
Um dia lhe fiz um poema tão bonito que nem consegui entregar,
é que o reli tantas vezes que o papel esfarelou.
Então resolvi escrever um poema sem papel e sem palavras.
Juntei um bocado de sorrisos e acerolas, e pus em sua janela,
ela gostou tanto que me prometeu fidelidade.
Eu quase aceitei, mas pensei bem,
pensei no Pedro, no Marcelo, no Canela...
E disse a ela:
– É melhor não, felicidade só minha?
Tinha que ser também dos meus irmãos.
E assim seguimos todos nós, felizes e cúmplices.

Até o dia em que ao bater às portas do castelinho ela não apareceu.
Havia partido sem deixar aviso
E aquela tarde pareceu sensibilizar-se com a nossa dor.
Fez silêncio.
Não houve pássaro que cantasse
E sequer uma árvore ventou.

16.10.06

Casa boa

Do reino cor-de-rosa do afeto recebo mais um pequeno lote de poesias da Luísa Müller - figura já presente, nos primórdios deste blog - e que molha sua pena num habilidoso e interessante trato com as palavras, além da carga sempre grande de sentimento, em geral leve de se ler.
Publico "Casa boa", desses novos, que me fizeram jubilar pela multiplicidade dos estilos de poesia abordados aqui no Presença.
Obrigado Luísa !

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Casa boa

Casa boa
branca
casa da gente
casada sente
a mulher
no meu peito
na mente
que voa no sonho
da casa branca
da vida boa.
Casa contigo
a mulher do meu peito
no sonho da casa branca
da vida boa
na casa da gente.

13.10.06

Afonso Nives

Tive a oportunidade de conhecer o Afonso Nives em um encontro internacional de poetas, em Orão. Egresso da intelectualidade branca da África do Sul, o poeta de 52 anos embarcou faz muito numa onda peristáltica de agressão inapelável e franca aos seus fantasmas.
Tendo visto holocaustos ao longo do apartheid sul-africano, Afonso Nives teve a peculiar reação de usar a poesia para agredir, tentar mutilar indelevelmente os "monstros insensíveis" da insensatez humana.
A agressão traz agressão, e assim navega o barco anti-poético do velho pirata - batendo e apanhando num mar casca-grossa de rebeldia senil.
Um caminho controverso, mas muito autêntico, conforme nos atesta a poesia "A moeda do ser".

A moeda do ser

O crápula ajeita o fraque
E sorri o maior escárnio de que é capaz:
Somos nós !


… somos todos pulhas
Tripudiando do inimigo caído
Ou sendo por ele trucidado,
Dependendo do momento.


Somos todos afeto
E infâmia
Ao mesmo tempo – e vê:
Os dois lados
Da moeda do ser.

11.10.06

livretos


Inverno de 2003 - Rituais de Ver e Olhar.
Compilação de algumas poesias minhas feita por Isaac e Rafael Fafito Saraiva. O excelente projeto gráfico deste último, surpreendeu na época, não só pela refinada técnica e criatividade, mas por atingir o cerne da temática reinante entre os poemas.

Nos próximos dias, pretendo postar imagens de todos os livretos que lançamos, em parceria e individualmente, até hoje; tão somente porque quero registrar esse caminho ilustrando algumas fotos do seu percurso.

Até!

Feito de Calma

Por um mundo mais preguiçoso e elaborado.
Tempo para as diferenças, boas pessoas e outras esquisitices.
Entropia!

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Feito de calma

Pede por um cometa que chame a atenção
Desvie o foco dos olhares
E deixe espaço para a serena solidão
A companhia da tarde
A membrana do silêncio
O vir a ser da luz se esvaindo
A lua – suspensa – lívida, insana.

Os sentidos exigem paz
Mas onde?
Tão dramática essa nova aurora
Veloz
Ponteiros, livros, conselhos...
Todos sabendo tanto, falando tanto
Eu simples demais

Alguém pensou o volume do sol
Mediu a distância
Pensou todas as variantes...
E o cometa não passa.

Será que cercar e demolir de vez as torres
Atropelar o papa
Incendiar a indústria...
Não, não.
Não!

Sem mais chutes no fígado, já cansado.
Uma flor, pode ser que de novo, fure o asfalto.

Honestamente
Não conheço outra maneira de ser que esta
Coisa confusa
E sem pressa.

Vinicius Perenha 10 de outubro de 2006.

9.10.06

o guichê

O Guichê

I

A lei definiu o ponto
Conceituou a vírgula
Racionou o riso
E amparou em sua miséria
A pena.

A lei desativou o entendimento amigável
E demarcou todas as fronteiras
Encomendou uniformes
E numerou o espaldar das cadeiras.

A lei aboliu a diferença entre honesto e legítimo.

E eu aqui, pensei:
Deus me livre da lei
Deus me livre dos homens da lei
Deus me livre da lei de deus
Deus me livre dos homens da lei de deus.

II

Eu achando que podia burlar o código
E deixar de quebrar pedras
Fiquei agarrado a uns pequenos versinhos
No fim do corredor matutando...

Um jeito de abrir a porta e sair sem discussão
Apagar as luzes, até!
Somente.

O oficial avisa – feliz – que o poema em três vias
Com cópia para a divisão dos revisores
Deve ser encaminhado à associação antes de...

De cá logo meu maldito macacão!!


Vinicius perenha – 09 de outubro de 2006.

6.10.06

Beco do Rato

Estivemos anteontem no Beco do Rato, na Glória, a fim de conferir alguns dos bons poetas independentes que se apresentam no Ratos Di Versos (nome do evento), bem como distribuir algumas cópias do "Absinto".
Também aproveitei pra lançar meu novo livreto, o "Lanterna mágica", com 12 poesias novas.
O ambiente estava bem legal, presentes poetas conhecidos do beco, como o sóbrio Pedro Lage e o imponente Flávio Nascimento, experientes trovadores com já mais de 20 anos de estrada.
O evento rola às quarta-feiras, quinzenalmente, sendo o próximo em 18 de outubro!

Ilê !

2.10.06

Mundo real

De um novo lote de poesias do Leo, me chegou "Mundo real". Os novos tomos que me chegaram às mãos, cada um com cerca de 6 poemas, indicam uma mudança nas recentes composições, até mesmo de um lote em relação a outro.
Os novos poemas continuam (trans)pirando sensibilidade, ainda um pouco subjetiva mas definitivamente mais certeira, mais anelante e mesmo pungente, pelo aprimoramento estrutural em conseguir literarizar com mais perfeição o conhecido embate "fantasia" vs "real".
Pessoalmente tenho me deleitado com estes novos lotes, que me trouxeram grande proveito e prazer em sua leitura.

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Mundo real

O sol de sempre é gasto
E a chuva também desgasta
Caiu aqui perto de mim
No Mundo que insiste em viver

Eu oro para arrefecer a dor
De ter a impressão que passo
Vou embora daqui em breve
E o Mundo perdura até hoje

Olha o que vai acontecendo !
Vida e morte
Não importa quem vêm
Do Mundo é o cenário

Medos de nada que existe
Desiste de você agora
Senti que o canto soou
O tempo no Mundo não demora

E eu que me achei o Mundo...
Junto do corpo ainda permaneço
Desço descalço de medo
Para sentir que estou no Mundo

Só sinto que existo se sinto
Acalma por hora
Dorme um pouco
O Mundo vai continuar

(Leonardo Schuery, em 29 de junho de 2006)

24.9.06

Janeiro Encharcado

A cidade respira o fedor que goteja
Das calhas o que restou da chuva.

O sofisticado-caipira
Carioca da gema metropolitano cidadão do mundo
Desce do trono e chapinha na água que devia lavar
E asfixia
Que vejam: não é o mesmo que afogar.
E essa água aos poucos toma a cor do centro
que não sei que nome tem
Mas é aquela dos pombos e mendigos
Notas velhas de um real
Fachadas e advogados da Praça XV de Novembro.

A cidade vai se perdendo de si e na falta
De cores para distinguir o mar do asfalto
Fica a dúvida
Se olhando nos olhos do moleque
Conseguiria responder caso me fosse questionado
Onde terminam as mãos e começa a lata de cola.

Vinicius Perenha – Janeiro de 2006

21.9.06

Adoração

Me faz nuvem,
Inaprisionável –
A inesquecível visão
Incomunicável
Que temos de dentro do avião.

Me liberta da prisão irrevogável
Com tuas palavras
E tua doçura,
Sem que eu me sinta um adorador,
Tísico de crença.

Utopista, te peço foco,
A impossível convergência,
Efêmera
Mas simplesmente
Desestruturante,
De tão redentora.

Nano-eu,
Atordoado no amor
Giga-teu.

(Isaac Frederico, aos 20 de setembro de 2006)
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ilê, poetas e leitores - concluí hoje meu sexto libreto, o quarto solo, denominado "lanterna mágica". como prévia eis o poema "adoração", espero que gostem.
abraços !!

19.9.06

Soneto do Mal Entendido

Não me avise que vai dar errado
E, tire os cálculos da minha frente.
Ei, suma! Siga – o seu! – em frente;
Verifique a área do outro lado.

Tenho legítimo o meu direito,
De dialogar em paz comigo;
Subir qual moleque no parapeito,
Contente, ficar exposto ao perigo.

Não me cobre posições no poema
Que, posso também virar o jogo
E, sem vinho ou palavras de fogo,

Lançar o decreto duma noite serena.
Ouvir bossa nova, dançar como um tolo
E escolher uma nova fatia do bolo.

Vinicius Perenha - 19 de setembro - 2006

15.9.06

Rafael "Grego" Huguenin

As poucas poesias que conheço do Grego possuem características estruturalmente refinadas e muito bem trabalhadas, destoando do processo de composição usual dos "poetas de rua" universitários, por assim dizer - e nada mais natural, em não vestindo o Grego as peculiaridades destes.
De uma pungência aflitiva, o soneto decassílabo "Sentado à beira mágoa os montes vejo" representa bem o que quero dizer. Incisivo em sua expressão, o poema incute-me curiosidade em conhecer as demais composições do autor.

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Sentado à beira mágoa os montes vejo,
órgãos afiados que projetam cumes
e em cujos escarpados, feros gumes
encontro a mesma corda que ora arpejo.

Facas, espadas, dardos que dardejo
contra o céu que se fecha em mil negrumes
não bastam pra calar os pesadumes
que o coração me cortam, e assim doidejo.

As armas contra a dor de nada ajudam,
a cada golpe rudes se desnudam
diversos braços novos que não venço.

E só me restam lágrimas salgadas:
com sentimento tanto assim choradas
me lavam ao menos o meu rosto tenso.

(Rafael Huguenin)

13.9.06

O Grande Absurdo

Da sequência de seis livretos lançados pelo Isaac em fevereiro ou março de 2006, O Grande Absurdo é o primeiro, e inicia a obra com imagens - essa é a impressão que tenho - que desenham bem o conceito do livro. Não vou me estender sobre as impressões que tive durante a leitura do conjunto, e somente acho válido sugerir essas impressões com alguns poemas que pretendo lançar aqui.
O poema homônimo abaixo abre o primeiro livreto e acredito que possa ser um bom representante do conjunto da primeira parte, já que encerra em si o espírito da primeira parte: uma bola de espinhos descendo garganta abaixo.

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O Grande Absurdo

E eis que você nem lembra por quê
Trabalha e ganha dinheiro,
Pasteurizado,
Sem norte no formigueiro,
Ele próprio sem sentido de ser.
Porque dentro dos limites
Do Grande Absurdo
Há uma lógica própria,
Funcional, coerente,
Pra quem abdica de si,
Pra quem dentro dos limites
Fica
Não se consegue detectar
O ponto de desvio.

Isaac Frederico - 2006

12.9.06

Absinto

Valeu meu camarada!

ótimos festejos, com exceção óbvia das sádicas sessões impostas a nós dois, nas quais acredito que você tenha se saído melhor, embora para isso, tenha covardemente empurrado a faca pro meu lado.
Tem volta Isaac, tem volta...

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Na sexta feira passada lançamos a primeira leva do Absinto; o livreto é composto de duas partes individuais, com poemas do Isaac e meus, respectivamente.
Por desconfiar que as pessoas que de vez quando passam por aqui são as mesmas que têm ou certamente ainda terão o Absinto, não pretendo postar aqui os poemas que o constituem, no entanto, caso haja interesse, é possível obter o livreto através de e mail.

Para quem não sabe, o Absinto é o segundo livreto no qual trabalhamos em parceria, o primeiro - Poesia para toda obra - é de outubro de 2005 e também encontra-se a disposição para reprodução.

saudações absínticas!

8.9.06

Fogo

Parabéns, Vinícius !
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _

Rapaziada,
É fogo no milharal.


Fogo

O elemento do pânico
Para os que têm a temer,
A insanidade flamejante –
O fogo.

Utopista, o fogo é alma;
alma.
Nenhum limite lhe ceifa
O movimento nervoso
De sua graça,
A alegria anfetamínica
De sua impetuosidade.

Oxigenófilo e apaixonado,
Irredutivelmente absurdo,
Hipnose, ira, magia –
Energia solta,
Piroanarquia !

Ordenhe o fogo e obtenha cor,
A rubra fração de sóis;
Obtenha Nero, o fero imperador,
E a tragicidade incoercível
Da saga dos anti-heróis.

(Isaac Frederico, em 01 de setembro de 2006)

5.9.06

Singelo

Só pra constar,

hoje fiz a mesma escolha que fiz todos os dias, desde o primeiro.

Para Rachel


Singelo

É cedo.
Café da manhã, sempre.
Bem vindo de volta, penso com sono.

Provoco um atraso generalizado,
Cochilo,
E saio num escracho barbado,
Amarrotado e esquecido.
Ganho um beijo e um abraço.
Te amo também...

A manhã familiar é a parte
Que eu guardo
Pra lembrar na velhice, com um resto de sorriso
Saudoso e lacrimejar disfarçado, a ausência futura
Dos tempos de hoje.

2.9.06

Vinícius Rosenthal

Antes tarde do que nunca para proceder à apresentação aqui no Presença do "poeta de um poema só".
Conheci o Lobão no curso de Filosofia da UERJ e - em meio à produção poética local que contava com André Bentes, Guilherme Borges, Vinícius Perenha, Rafael "Grego" Huguenin e Felipe "Abdul" Sandin, Rodrigo Ajooz e eu mesmo, entre outros - o Rosenthal escreveu apenas um poema, chamado "Bandeira" - o único necessário, conforme brincamos na época.
Simples e analítico, o poema vai direto ao ponto, pouca disposição para poupar, sendo a estrofe final o aspecto intuitivo da poesia. A ausência do ponto final no último verso me é especialmente intrigante.

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Bandeira

Todos com suas bandeiras
Bradam, gritam, reclamam
Não querem mais se submeter
Querem ser OUVIDOS
querem falar falar falar...

Todos com suas bandeiras
Esqueceram que o homem
tem dois ouvidos, e uma boca
para ouvuir duas vezes
mais do que falar.
- - - - - - - - - - - - - - - - -
Eu com minha bandeira...
sei que sou todos

30.8.06

Poluto

Bem-vindo a Poluto! O nosso planeta.
Nossos rostos fulvos, sem expressão,
Nossos corpos em decomposição
Nos explicam de maneira correta.

Almas de raposa, olhos de cão –
Predar é nossa grandiosa meta:
Consumo endêmico, tal anti-asceta,
É nossa mais orgulhosa missão.

Encetamos a hecatombe completa
Dos irmãos da nossa raça seleta –
Tudo que é vivo! Nenhuma exceção…

Avançamos, firmes, à solidão,
Satélite inata do grave Não,
Nosso mais disseminado profeta.

(Isaac Frederico, 30 de agosto de 2006)

28.8.06

Entre Tanto pt. 1

William Galdino é um amigo da Ilha do Governador, que não vejo há tempos e tempos. Na última vez que o vi, havia lançado o livreto Entre Tanto, o primeiro e único, até então.
Recheado de elementos absurdos, kafkianos; a inconfundível marca de uma fase solitária e introspectiva se revela seca a um primeiro olhar, mas não tanto em alguns tropeços inevitáveis durante a leitura, que sugerem uma sensibilidade afiada, dentro do estilo bem desenhado e confuso das paisagens presentes nas linhas.

Delírios

Assumir qualquer impotência,
E sumir na nuvem da pacificação.
À noite os velhos voavam insanamente.
Estrondosas gargalhadas cortavam o ar.
Enquanto isso,
Eu observava os movimentos bruscos,
Das estrelas despedindo-se,
E me acalmava junto a um copo d’água.
Feito bêbado sem lar,
Comunicava ao luar minha existência numérica,
Gritava ao céu:
Sou e estou! Nada além disso!
Tomei conhaque em bares sujos,
Acompanhado unicamente pelo senhor de chapéu de palha,
Que insistia em se dizer invisível.
Adormeci nas escadarias de uma breve rua,
Que levava-me a lugar nenhum.
Sumi e despertei onde estou,
Frente ao espelho.

(William Galdino – fevereiro de 2004)


27.8.06

Dizer adeus, com delicadeza

Agora reparo
Que vejo ao longe
Uns tênis sujos com as minhas pernas
Seguidas de um tronco que é meu,
Os braços longos e um cabelo louco
Que me tapa a cara
A face, o rosto
O que será feito de mim?
Será que me perdi?
Ou ainda não me encontrei
Que pena
Que desgosto
Que perda de tempo
Falta de tacto
Será que vale a pena
Lavar os tênis
E
Limpar o rosto
Acho que não,
É falta de gosto

... Mas se me der na telha
Sou capaz de enlouquecer
E ainda se me lembrar
Sou capaz de me esquecer
E mandar tudo praquele lugar

Depois...
Hum... depois, sou bem capaz também de fugir com você
Para onde o luar nos levar
Para bem longe da angústia,
Sem quês
Nem porquês
... Sem bons dias
... Como estão meus senhores
... Sem concertezas
... E muito obrigado

Assim vamos sair,
Seguimos o luar
Fechamos a porta
Dizemos adeus
Com
Delicadeza


(Milu Petersen, em março de 1982)

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Milu Petersen nasceu em Moçambique na cidade da Beira, em 1956 e hoje é artista plástica residente em Cabo Frio, RJ.
Esboçou alguns versos na década de 80, período de seus vinte e poucos anos, refletindo angústias e incertezas de uma jovem com um filho recém-nascido, em meio ao establishment da sociedade portuguesa dessa época, onde viveu.
Sua poesia alterna expressões da inocência redentora da paixão amorosa, tão viva e importante nos jovens de todas as décadas e séculos, com as sombras das cobranças de uma sociedade pouco aberta aos "idiossincráticos" hábitos dos jovens egressos das então colônias de Portugal.

24.8.06

Controvérsia

A chuva e os raios
São o que são -
Não precisam ter
Suas trajetórias mapeadas,
Seus mistérios revelados.
Hoje é assim:
Trovão de x decibéis,
Família, gênero e espécie;
Chuva mediana,
Tantos mililitros por gota.

Me deixem fora dessa faina;
Desvelar o universo
Em compasso incessante:
Pavimento controverso
De um caminho frustrante.

(Isaac Frederico, agosto de 2006)

22.8.06

André Bentes

O André é um amigo dos tempos de calouro, na filosofia da UERJ. Agitador inquieto, já andou divulgando seus escritos pelas ruas, centros culturais e etc.; atitude que, embora inúmeros exemplos possam depor contra, ainda creio louvável.

Hoje, embora o contato seja sempre de tempos em tempos, distante quase sempre, creio que está ocupado com outras tentativas e preocupações. Recebi recentemente seu novo livreto, Recortes do Tempo, do qual o poema a seguir foi retirado.

A poesia do André, ainda que para quem conhece outros trabalhos mais antigos seja claro o amadurecimento de alguns temas recorrentes, me parece sempre orientada por novas descobertas pessoais e cravada de reflexões filosóficas, geralmente angustiantes e evidentemente experimentadas na pele, pelo autor, o que por si só já legitima o espaço ocupado e a força dos seus escritos.

grande abraço André!
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Fenômeno

Idéias não suportam o pulsar sanguíneo
E como vapores d’água que o corpo expulsa
Exilam-se no véu oculto de um sentido
Que explode em sensação, como a alma busca

Insiste em estar viva a veia latejante
O dedo já se move por vontade própria
A língua é enrolada dentro da garganta
No peito a redundância de amor e ódio

São átomos e células, tecidos e órgãos
Os músculos que estendem também se contraem
O cérebro da casa fica lá no sótão
E os sonhos são amantes que não se encontraram

Transborda o sentimento e a palavra cala
O olho lacrimeja sem ter um motivo
O pescoço se traduz como um arrepio
E o tato todo gira como uma mandala

O dente apenas morde e a ferida sangra
Aberto o apetite, sabor e aroma
vermelho traz a fome, fome traz a dança
a sede nos caninos é só um sintoma

O corpo submisso exige mais um pouco
E as unhas são a águia sobre o meu pescoço
A alma está segura pelas minhas coxas
Some o pensamento sem nenhum esforço

Agora é só o peso, e grato à gravidade
Procuro a tua boca, olhos já cerrados
Sou o universo inteiro dentro de uma flecha
Outrora eras meu alvo...agora és meu arco.

21.8.06

Ouço sons... e acordo

Ouço sons... e acordo
Abro os olhos... e vejo
Pela janela, o lampejo
De um novo dia cedo.

Sinto o sublime calor
Do corpo amigo... mas mortal,
Mente alerta, tento compor
Os restos de sonhos... e o real.

Tantas vezes repetidos
Esses ricos instantes de se ser
Passam até despercebidos.

No divino valor de se ter,
Em cada rotineira alvorada,
A nossa vida despertada.

(Marcelo Pontes, MG)

18.8.06

O jogador

Existe um preço a ser pago por cada atitude, não se pode escapar dos resultados disso ou daquilo. Um homem tem que lidar com o fato de que seu tempo começa a expirar a partir do primeiro momento e, creio eu, isso poderia funcionar como um alarme constante a lembrar que ninguém melhor que você mesmo pra decidir quais caminhos trilhar. O erro é achar que existem desvios.

Para Flávio Brandão


No dia em que você voltou, chegou em casa exatamente quando eu já contava vinte e sete cachorros no portão. Não pareceu curioso ou mesmo interessado no fato, e pude reparar que, coincidência ou não, todos silenciaram enquanto você passava. Nenhum deles estava livre de pulgas ou feridas, grunhiam, brigavam por espaço e rosnavam enquanto se acomodavam sob as flores da entrada. Ainda chegaram uns tantos em levas posteriores e por fim, isolaram toda a fachada da casa, o jardim e os portões. Acredito que naquele dia nenhum dos cães vadios da cidade desviou da mais insólita matilha de que já tive notícia.
Lembro que você me pediu que buscasse uma cerveja, que tossiu no primeiro trago e pediu que eu também esperasse esquentar um pouco para bebermos juntos. Conversamos durante horas no sofá branco e surrado da sala, quase sempre sobre suas histórias de uma juventude longínqua, em tempos imemoriais e lugares esquecidos, casos tão vivos e formidáveis, que eu infantilmente imaginava se não passariam todos de invenção. Você falou bastante sobre as árvores do jardim, especialmente da mangueira atrás da casa e de um pinheiro que nunca deveríamos plantar, salvo se quiséssemos atrair a morte. Irritou-se quando atencioso, respondi que não, ao menino que perguntava do portão se poderia pegar as romãs caídas no quintal. Estranhamente não havia nenhuma.
Você foi ao quarto, vestiu a blusa amarela de mangas compridas e penteou os cabelos amarelecidos, voltou à sala para assistir ao jornal, mas não esperou que começasse a novela, tamborilou os nós dos dedos no tampo da mesa e cantarolou uma ou duas vezes algo que não consigo reproduzir exatamente, mas parecia uma daquelas músicas do carnaval carioca dos anos quarenta. Antes de deitar para dormir foi resoluto ao portão e expulsou a força todos os cães, que não pareciam dispostos a abandonar sua estranha vigília, porém em nenhum momento foram hostis, mesmo quando você espancou um mais pesado e teimoso que insistia em manter seu lugar. Entrou e deitou-se sem desejar boa noite ou reclamar do volume da televisão. Minutos depois, lá estavam eles novamente, mais de cinqüenta vira latas espalhados no caminho que vai do portão à varanda. Não dormi bem e notei que durante a noite o número de animais diminuía pouco a pouco, até que na última vez em que levantei, vi somente uma cadela preta em meio as roseiras, com as patas sobrepostas e o peito manchado de branco.
Acordei ao fim da manhã e descobri que naquele treze de junho você partiu enquanto eu dormia. Haviam levado você, atravessando silenciosamente a sala onde eu estava em um colchonete. Não estranhei quando disseram que todos os cachorros da cidade haviam sumido e a tarde tive vontade de abrir seu armário. Encontrei dezenas de romãs e umas fotos amareladas de pessoas que não conheci, entre elas a do time do São Cristóvão de 1937. Não pude encontrar seu baralho nem as fichas de jogo.
Hoje, percebo que lembranças como essa morrem todos os dias com os homens e eu também um dia irei sobreviver somente na memória de alguém, por algum tempo. Gosto ainda de imaginar que você acenou quando passava por mim, carregado pela sala naquela manhã e agora, deixo um pouco de você nestas linhas, para que sua memória possa me ultrapassar. Assim, um dia nossos tempos e estados coincidirão mais uma vez e talvez queiramos beber novamente, em um sonho, em uma conversa, alhures.


Vinicius Perenha- julho de 2006

Portas

São portas demais
Onde deveriam haver
Espaços abertos;

O monstro desossado
De um desafio sem sentido -
Girar mais maçanetas
Para chegar a lugar algum,
A nadificação dos seus esforços:
Abrir portas para obter corredores,
Cada vez mais infinitos,
Nunca o rutilante vão
Do espaço aberto da redenção.

(Isaac Frederico - 18 de junho de 2006)

17.8.06

Rude

rude

Estar livre é o grandioso sonhar.
Isso sonha quem anda preso.
Que isso de sonhar ser livre
É pensar e não fazer.
Óbvio.

Se chove demais não há muito o que se possa fazer
Mas sentar na chuva e sentir
Que a água escorrendo na cara é um sem contas
Preferível
Que três minutos de lamentos
Já vale a gripe do dia seguinte.
Porque de fato
Esperar a chuva passar é uma estupidez sem proporções.

Vale no jogo
O que do jogo faz parte.
Você fica pra trás
E reclama
E alguém na fila de trás passa à da frente.
Na sua frente.

Continue sonhando,
No banco de trás.


vinicius perenha - talvez abril de 2006

Ar

AR

Teus sonhos e histórias
Tuas questões sem solução
E tua marca na areia
O ar fragmentou
E borrifou no ar

Teu perfume em águas distantes
Tua raiva em terras hostis
Teus terrores no fogo de um inferno algures

O ar é a promessa do infinito
E a garantia da subversão próxima
É a plena ausência das colunas
Que pensavas existirem abaixo dos teus epitáfios risíveis

Que medida de tempo tens pela frente?
Mísero ou grandioso
Tu
O ar
E mais nada.

Vinicius Perenha – 15/08/2006

12.8.06

Água

A água leve,
Tão pluma quanto fresca,
Tão mera quanto o pacto
Do duplo hidrogênio
Com o só, quase fato,
Do uno oxigênio.

A água me leve,
Tão boa quanto o gozo,
Tão linda quanto o nulo,
De reação sistêmica
Tão simples porque absurda,
Do par de hidrogênios
Com o um, quase todo,
Do entrópico oxigênio.

(Isaac Frederico, 2 de agosto de 2006)

volta às atividades !

caros,

o blog volta à ativa, com o ingresso do vinícius perenha nesta empreitada.

ainda estamos procurando um novo nome para o blog, que abarque nosso intuito de divulgar as poesias que escrevemos, há mais de 10 anos.

também procuramos divulgar escritos de amigos poetas que não podem ser lidos de outra forma, em virtude de sua pouca expressão mas não pouca qualidade.

um grande abraço e boa leitura !

isaac frederico