22.6.10

Trecho do diário sem floreios

Era um tipo que agradava as mulheres, vá entender. Senso de humor que só a elas fazia rir. Frases feitas e bem colocadas, um certo ar dominador de quem diz vem cá puxando pelo braço. Falante, com uma boa dose de falsidade no gargalhar, mas elas não notavam ou fingiam não notar. Paula, Beta e... não me lembro o nome da terceira, só do decote que ofertava aos meus olhos um par de seios, loucos pra fugir das amarras daquele sutiã opressor.
Ele pedia a cerveja como um tirano pede a degola dos seus inimigos, toda vez que o garçom se aproximava era agraciado com uma piadinha que as faziam rir incontrolavelmente. E lá estava eu naquela mesa, recebendo gratuitamente o meu curso de conquistador do grande Don Juan. As três senhoritas logo esqueceram a minha presença. O galã meio malandro, que se achava malandro e meio virou uma espécie de totem, um deus cultuado por olhares apaixonados de servas prontas a atender o mais sórdido dos seus pedidos. E eu ali com minha cara de bunda relegado a mero objeto decorativo, as minhas mais belas colocações não causavam nenhuma reação enquanto ele com suas abobrinhas era reverenciado como um exemplo de sabedoria ocidental. Tenho que confessar o puto sabia como encantar as mulheres.
Pedimos a conta, ele recusou o dinheiro delas, disse que nós dois pagaríamos, um verdadeiro cavalheiro. Sorri felicíssimo, puxei a carteira, uma semana de trabalho gasta em duas horas. Na saída meu grande amigo me dá um abraço caloroso e me deseja uma boa noite, a dona do decote toma um táxi, Paula e Beta dão um tchauzinho sorridente, e o acompanham, uma em cada braço. Conto o que me sobrou no bolso, e tomo o ônibus com destino à Praça da Bandeira.

André Luis Pontes, diário sem floreios, 1997.

16.6.10

O cerne




Empreendeu, por fim, a grande viagem

Ao ponto mais austral de seu ser,

Suas experiências passadas mais traumáticas

(As boas e as ruins)

Lanhando-lhe o equilíbrio.

A náusea surda

De ascender ao cerne,

Que neste plano

Quem pode discernir

O dentro do fora?

“É um soco no estômago

Descobrir suas lacunas”, pensou

E a revelação última

Quando descobriu

Em Deus e no diabo

A mesma e única pessoa.

Ali seu limite.

“Uma coisa é a verdade,

Outra coisa é o que se quer enxergar”.



(Aos 28 de Janeiro de 2006, poema do tomo Jesus O Nazareno, parte do livro Acontecente, lançado pelo Presença em 2006)

7.6.10

Do tempo

....................................................................Pintura de Kirchner.

Enquanto esperas passa o trem.
A praça já foi maior,
e a alegria idem.
Ninguém leva todos,
quase todos já se foram,
ou ficaram,
na lembrança do tempo que passou
e esqueceste de vivê-lo.
É frio o teu olhar ou é fria tua coragem?
Haja medo ou bravura é a ação que vale a pena.
E tu não age , tu não arrisca,
e o dia passa mais uma vez.
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Dezembro de 2001.