26.2.07

Pedro Lermann

Mais uma do velho e ácido Pedro Lermann. Um homem de sabotagens não menos herméticas que seus muitos textos.

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A Emboscada

Finalmente se lhe afigurava a áurea oportunidade pela qual tanto aguardara. A efêmera e raríssima presa de seus sonhos. Atravessara seu caminho tal qual um desfile cívico, uma procissão de almas. O desastre natural mais belo e assustador de sua não pouca experiência de observador atento.

Diante da pueril sensação de regresso às indóceis paixões de sua juventude, ele, um impulsivo e possante Mangalarga, pela primeira vez, hesitou. E enquanto hesitava, não dormiu, bebeu ou jogou. Seu espírito fora completamente subjugado pelo embrião do caçador que surgia, impaciente, dolorosa e silenciosamente.

E sob os auspícios imperiosos dessa gestação, crescia, então, um soldado. Meticuloso e hábil nas sutilezas e manhas da mesa onde, então, dispusera todas as suas fichas.

...

Eis que Tibério, implacável, se acerca de Úrsula e corajosamente balbucia seu ultimato:

DEVORA-ME OU TE DECIFRO.

Ela, felina, furtivamente diz sim e deixa que o vento leve os alçapões que não foram usados.

23.2.07

Nuance

Dormes.
Envolta em meus braços
Um cordeiro indizível de belo,
Um sono de tal ternura,
De uma graça tal que perdura
Minha vigília insistente,
Meus olhos lassos
Ninam-te o sono
Em paixão quase demente.

Dormes.
Tua nuca trescala o perfume
Dos meus sonhos de menino.
Aperto-te a cintura
Em toque de precisa brandura,
Ronronas ao gesto sentindo,
Murmuras mimoso queixume
E dás-me a mão, alvissareira,
Maliciosamente sorrindo…


(Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2006)

21.2.07

o homem que ri

abram na página 111 do "homem que ri"
e vejam ali a semente da contração de todos os músculos,
no carnaval somos todos músculos e suor, contrações,
tensão, carga, descarga, relaxamento -
a fórmula do orgasmo
a hemoglobina do espasmo
o fim do carnaval e seu fogo no milharal -
ano que vem somos nós
apenas um ano mais velhos.

14.2.07

Aparição

aloha, fantasia
...

* * *

Aparição

E, como só faltasse sorrires,
Sorriste;
O sorriso fulgurante
De quem domestica a fera
Pela candura,
De quem leva o razoável à loucura
Com um toque grácil,
Um trejeito airoso
Que rebomba no coração faltoso
De todo eu,
Imerso em querer-te posse.

E, como só faltasse (aconte)seres,
Foste;
Imarcescível,
Distinta,
Perjurando a premissa divina
De todos serem iguais,
Um sonho floral,
Alva e doce,
A revolução radical
Do meu tolo conceito
Do que vem a ser –
Meramente –
Perfeito.

(Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 2006)

13.2.07

Ponto final

As pessoas comuns
usam reticências
ou mesmo ponto-e-vírgula;
Apenas os heróis
(que têm sempre
um quê de trágico)
usam ponto-final.

(Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 2007)

10.2.07

Jantar a dois

Sentaram à mesa.
Ela e ele.
Casamento fracassado.
Cachorro traumatizado.
Pediram divisão de bens na entrada.
Mágoas e marcas para prato principal.
Deixaram o pedido de desculpas para sobremesa.
Mas já era tarde.
Estavam tão cheios, que só levantaram da mesa.
"Adeus Antônio".
"Adeus Tereza".

9.2.07

Passatempo

(da série "dos que não estão à altura", mas, enfim, só pra dar uma movimentada aqui).


Resolveu comprar um livro. Para passar o tempo enquanto esperava por ele.

Leu na escada, enquanto ele subia ao apartamento. No ônibus, enquanto ele ouvia um som. No elevador, enquanto ele se concentrava por causa da claustrofobia. Na porta do cinema, enquanto ele discursava sobre a fotografia do filme iraniano. Na mesa da lanchonete, enquanto ele decidia o que comer para não agravar a úlcera. Na praça, enquanto ele ouvia atento o discurso político do ativista. Na rua, enquanto ele analisava a arquitetura dos prédios históricos. No ponto de ônibus, enquanto ele reclamava do estado calamitável do serviço público. No restaurante, enquanto ele pensava o que valeria a pena pedir sem ser tão caro. No táxi, enquanto ele discutia com o motorista as mazelas sociais do país. Na fila do banco, enquanto ele esbravejava por causa das tarifas abusivas. No supermercado, enquanto ele escolhia as frutas.

Leu Galeano. Neruda. Rilke. Florbela Espanca. Pessoa. Drummond. Vinícius. Kafka. Cortázar. García Márquez. Machado. Thomas Mann. Nassar. Lispector. Inês Pedrosa. Gauguin. Vargas Llosa. Saramago. Hatoum. Pedro Naves. Shakespeare. Bilac. Carpentier. Borges. Zola. Virginia Wolf. Hilda Hilst. Gutiérrez. Bukowski. Allan Poe. Norman Mailer. Baudelaire. Twain. Caio Fernando. Casimiro. Castelo Branco. Augusto dos Anjos. Flaubert. Dickens. Dostoievski. Defoe. Azevedos. Rimbaud. Balzac. Bocage. García Lorca. Victor Hugo. Byron. Dante. Goethe. Schiller. Alencar. Guimarães. Carroll. Lima Barreto. Proust. Quintana. Cervantes. Nélida Piñon. Marquês de Sade.

E o tempo passou. Um dia, ele soltou um grunido. Argumentou que, com ele, o livro, a concorrência era desleal. Ela colou os olhos amendoados por sobre a página de seu mais recente Calvino:

- Fazer o que, se é ele, o livro, que me faz projetar sonhos que nunca azedam?
Rio, janeiro de 2007

4.2.07

O que não quis colher

aloha presença !
uma poesia do Grego.
boa folia a todos !

* * *

O que não quis colher
era a flor feita estátua,
a fútil flor fingida
que adorna tua máscara,
jardim de simulacros.
Esta flor, flor anêmica,
flor de outono livresco,
traz em si todo o ranço
de uma flor feita estátua,
o que não quis colher.

1.2.07

Cara e coroa

O sol cresta-me a pele
Se estou na praia,
A um passo da sombra.

O sol torra-me o cerebelo
Se estou no deserto,
A uma eternidade do abrigo.

Equidistante camarada
De implacável inimigo.

A lua lavra-me os sonhos
Se a miro, pés no chão,
A um passo do bom-senso.

A lua assombra-me o juízo
Se nela moro - sou lunático
A milhas da sanidade habitual.

Equidistante musa
De distúrbio mental.


(Rio de Janeiro, em 10 de dezembro de 2006)