28.8.07

Cronologia

Joelhos ao solo
E as palmas das mãos
Chupeta e mamadeira
Ensinamento é aceitação

O corpo de pé
E os pés no chão
Dedo no umbigo e meleca
Pensamento em formação

Entusiasmo orgiástico
Amizades e diversão
Mãos nas vergonhas
Mito e repressão

Brinco na orelha
Tatuagem de dragão
Faculdade e bebedeira
Fumaça e revolução

De terno e gravata
Sapato lustrado - anel por convenção
Dinheiro e agenda
Filhos e preocupação

Serenidade aparente
Saudade e desilusão
Vontade de voltar no tempo
Impotência perante a vida

Caixão.

(Fábio dos Santos)

27.8.07

Analógico

“Esse peixe é tão lento que até um sujeito analógico o pesca”, menosprezou o cidadão-digital. Os peixes modernos, como tudo o que é contemporâneo, não dão conta das expectativas depositadas sobre eles – ou são as expectativas de hoje em dia que colapsam qualquer objeto de sua incidência, na medida da nanotecnologia e a ultrainformação condensada em uma impressão digital, acessível somente aos nervos, toda a cartografia de tudo que já se pensou em todos os segundos de todos os big-bangs desde o instante AA#B00345772-21.
Isto é obviamente uma piada, esta é a impressão que tenho, mas ao mesmo tempo é difícil, eu diria inatingível, se ver livre da correria que, quanto mais distante do epicentro, menos sentido tem. É um fenômeno de textura que, apresentando um padrão de mosaicos, na escala natural, revela imagens concomitantes em escala cotidiana, e se apresenta ao tato com sofreguidão e piedade, na escala macro, quanto mais macro, maior, por definição, e maior, linearmente, a palavra-semente, ruim, àspera, sobre a boa nova, que de nova tem o bilhar AA#B00345772-21 de anos.
A perdição e náusea vieram a galope para os visionários deste fato, os magros que andaram, andaram, andaram e andam, carregando em suas faces a face solta do fato dependente do tempo para ser fato; sem vértebras somos reféns da gravidade e não podemos andar para diante, talvez a condensação da informação e a rapidez que nos é exigida sejam a vértebra necessária – ou talvez a vértebra a mais que nos pune com um desequilíbrio do nosso centro de gravidade, quem sabe?, quem tem referencial suficientemente cósmico para afirmar? E aí estamos outra vez nos terreno pantanoso da dúvida eterna, eterna desde sempre, a contingência nunca utilizada, o continente pan, uno, a questão que nos é inseparável desde… e lá vem outra vez o “desde”, o tempo, a informação, o labirinto, o desmembramento, pedaços cognoscentes de Deus e servos obedientes do Eu.

(Escrito do livreto "Reações ao Grande Absurdo - A Palavra", parte 2 da obra Acontecente)

20.8.07

O PoP - Heyk Pimenta

Dando prosseguimento à seqüência Heyk-William de textos, rs.
Mais uma vez, o blogger não me permite a diagramação original do poema. Uma pena. Todos os poemas do Heyk têm diagramação muito bonita e marcante, mas, infelizmente, os leitores terão que ficar exclusivamente com o conteúdo. Eu ia escrever "apenas" ao invés de exclusivamente, mas, nesse caso, não é apenas, é coisa demais!
Presença!
*********
O PoP

A Semana de Arte Moderna não foi
popular
o pipoqueiro não entrou pra ver
A inconfidência mineira não foi popular
o escravo o capitão do mato e a gentalha
não pediram bis

A semana de vinte e dois vanguardista
popular como pele de chinchila
de massas como o aldente venesiano
que custa 80 euros na praça San Marco
não foi vista nem lida

Os homens descalços não puderam entrar
e nem leram nos jornais
já que eram iletrados

A inconfidência do ouro mineiro
30 dinheiros daqui para o além
não incluiu mucamas nas fileiras

o iluminismo só reluz em quem tem
dourado no corpo

Dependurado pelo pescoço
qualquer homem é santo
reconhecido o herói depois de morto
é mais claro que é heroísmo
e é só em vida
os tropeços na forca não predizem
a futura aceitação magistral do herói

Como antes foi o filho do jogador
das peças brancas e pretas do xadrez
depois o médico argentino
no meio o hindu embrulhado no lençol
ainda cairão heróis por terra

Será que os soldados da guerra santa da
cocaína
serão embalsamados à bronze
e postos em cima de cubos de mármore?
exemplos de
bravura e
paixão
para o próximo século

Minha vida continuará a mesma
pacatos só são heróis na bíblia

Popular era o angu a mandioca e a couve
hoje são os copos de guaravita
o cimento nas calçadas com ou sem
papelão
e as capas de revista
investimento gratuito
parar na banca para ler a manchete
ela é popular
a gata da hora é popular

Um real não salva a vida do homem
com as costas na urina
unhas encravadas
sorriso preto às oito da noite
cabelo encebado atrás da orelha
Mas garante a cana o solvente a gata da
hora
um
outro
ou outro

Um real não é herói

Uma semana é popular
a semana de fevereiro
a semana de um ano inteiro
por voto ela fica
a que não quer passar
abre as portas do ano
dos heróis
do sorriso preto

herofagismo com arte
um real é popular
Heyk Pimenta

17.8.07

Fuligem e Fulgor - William Galdino

Fuligem e fulgor

Vermelho abria-se em sorriso à estupidez disfarçada. Fez de cego pros fatos. Horas mortas no corpo estático. Uma cadeira velha. Um dia de chuva. Pouco via. Há muito havia ido embora a compreensão. O mundo era do tamanho do que os olhos alcançavam e num quadrado minúsculo eles cegaram. A mente era um saco de retalhos. Uma imagem por segundo, não, muito mais que isso. Velocidade que impossibilitava qualquer assimilação. A náusea. O coração acelerado quando a sobriedade gritou mais alto e trespassou as barreiras dos artifícios. Por terra o muro que circundava o real. Incompreensão. Apenas tolices ditas para manter a conversa. E no fundo ele queria cair sobre ela e fodê-la com raiva. Era o corpo que não reagia às vontades. Era o cansaço e o som estridente dos garfos arranhando a parede. Era sul, era norte, era confusão. Não havia o certo, não havia o errado. No corredor do hospital ele a sentiu como há muito não sentia, a vida crua. Era preciso deixar o silêncio do esconderijo. Cair nos fatos. Chocar-se com o mundo.
Abandonar e entrar novamente.

William Galdino, Janeiro de 2006.

16.8.07

A Bula da Ordem - Heyk Pimenta

Não conheço quase nada da história do Heyk. Só sei da acidez de sua poesia. Ao vivo é melhor ainda. Tentei manter a diagramação original do poema, mas o blogger não deixou =(
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A BULA DA ORDEM

Como como como
só vomito
me perdi no tempo
mas entendi o ciclo
sensivelmente duro
me tornei pacífico
e regurgito gaivota
porque sardinha fabrico

pra me livrar de tantas vezes
em que meu tesão intensifico
faço pausa pro bom grado
e os outros homens imito

então corro corro corro
porque não há tempo
e assim contemplo

o que como como como e vomito

Heyk Pimenta

14.8.07

"Risos"

Vou preparar um riso
amargo
destes esquecidos

sob guarda-chuvas,
atravessando a rua
para sempre.

Prepararei este riso
amargo
povoado de outras menores
doçuras,

cheio de outras delicadezas...
dessas pequenas mentiras.

um riso amargo
para ferir tudo
o que ainda
não fui capaz de sentir.

13.8.07

"Operários"

Gira o torno
gira o ponteiro mais veloz
uma e meia numa tarde absurda
operamos dinheiro dentro das máquinas
operamos o tempo
gira o torno e torna a girar
o sangue frio nos tubos de aço
um riacho vermelho e prata
éramos ópera
cantávamos o apito das dezoito
a noite banhava o sol
uma lua de sabão em pó já apertava os olhos
cantávamos às solas de sapato no barro
a ópera moderna
girava o torno noutro turno
nós a caminho de casa
a família e os filhos da janela
comemos do pão pela manhã
durante o dia o estômago quente
agora a noite, uma sopa do almoço
o p e r á r i o s
mordemos os lábios numa reza vaga
apagamos as sextilhas, deixamos os versos
noutra manhã manchada, marchamos em frente
operários de o p e r á r i o s
vamos operar a rota validez do esforço
o ignóbil agir no arado escravo
e festejar as sombras
beber nesse escuro vão entre as casas
que a noite esconde nos quintais
onde podemos ver a vida mais leve
onde podemos entender os cães
a atirar-lhes estrelas
e ajeitar-nos no sofá remendado
para um momento de paz
operamos o inferno
o p e r á r i o s
operamos um decênio
o p e r á r i o s
operamos as máquinas
e matamos nossos corações maquinários
operários surdos
operam seus dedos
nessas letras
nessas teclas
opero por vocês
que me operam
e operam minha voz

Anônimo

Teu corpo nu - branco
rio verde de pequenas veias
salientes
para fora da pele,

sob a penugem amarela
e magra
a cobrir-te na extensão
que és tu agora,
quando penso.

Avisto que tua boca
sela neste resquício o que dizes
sem por muitos me focar - sufoca-me.
No que não pensas?

Assim, o nu de teu corpo
no branco lácteo de meus pequenos dentes
instala-se avaro
como o gosto da carne

e aquele cheiro
cheio de suavidades
vem demonstrar que eu ainda preciso
dentro dessa minha força raquítica

abrigar o desejo obeso de
te esquecer.

10.8.07

É fogo

ilê presença !
posto nova poesia do saudoso presente Vinícius Perenha.
este poema já é posterior ao lançamento do seu último livreto, o "Levante", do início deste ano.
abraços a todos !

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Aceno
Com meus sonhos e idiossincrasias.

Projeto a vitória quando seus olhos antecipam que
Vai sorrir
E responder meu aceno
Com seus sonhos e idiossincrasias mais.

Vai chegar perto
E
Trezentosessentagraus-ear
A ordem lógica das coisas.


Com um aceno tão simples descubro que
Seeuparardevocê
Me afogo.


(Vinícius Perenha, agosto de 2007)

6.8.07

Regresso

Bom, esse poema retrata o regresso de um jovem cadete ao seus aposentos numa escola militar.
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Desliguei a luz do farol
Acendi a luz interna do carro
Aproximando-me lentamente
Do sentinela ali parado

"Identifique-se por favor"
Interpelou-me
Mostrei-lho um documento
Autorizou-mo

Adentrei ao lugar
Olhei novamente o documento
Guardei-o
Não sabia ainda quem eu era.

(Fábio dos Santos)

O primeiro último encontro

Quisera ficar mais alguns minutos
Ao leito quente onde sonhava seguro
Quimeras de amores feitos
À língua mole e coração duro

Mas pedregoso céu ainda escuro
Na janela onde ia à passos curtos
Decretou mora ao cobrado juro
À bagunçada cama onde dormiam juntos

Enquanto se realizava a aurora
Que doirava os olhos pequenos e molhados
Vermelhos tristes que tinha à hora
Aumentava-se a distância dos braços dados

Há muito seus atos foram julgados
Revés dos perdões que teve outrora
Punido pela rotina e desleixo conjugados
Refugiados na bebida agora chora

Fora um belo caso
Que quisera a corrente do rio
Terminasse raso
Terminasse frio

Fora apenas uma noite
Navio que desatraca do cais
Não merecia esse adeus - maldito açoite!
Não merecia... um até mais.


(Fábio dos Santos)

5.8.07

Catecismo

minha descrição predileta do poeta Afonso Nives sempre começa com "egresso das fileiras da poesia pós-modernista sul-africana..." mas o velho poeta e então bôer rasga-me as definições e se coloca de forma pouco propícia a dúvidas de quaisquer gêneros.

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Ave, bispo.
Seca a lágrima vespertina,
Vã,
Libertina,
Do sofrimento arrebanhador,
A bata puída,
A crença grávida
De fervente louvor,
Prenhe de párias
Do deus-dor,
Sofricêntrico.

Pendura no varal
O gafanhoto descido da cruz,
O ídolo hanseníaco
De tão castigado
Que carimbaste com "J.C.",
INRI,
Ri
O vicário das mucosas abertas,
Sacerdote desconexo
Da punição limítrofe
Do anti-sexo.


(Johanesburgo, aos 10 de dezembro de 2006)

2.8.07