23.3.09

Uma concha ao pé do ouvido


Daquelas águas que conforme os dias variavam suas cores
Verde
Vermelho
cinza, surgiam crinas, eram cabeças de éguas degoladas.
Porcos inchados, cães saciando a fome de urubus.
Cavalo morto atrapalhando o futebol dominical.
Susto de verão para banhistas
nos tempos em que suas areias eram invadidas por incontáveis guarda-sóis.
Mandalas reluzentes a beira-mar.

Jigogas.
Cobras de duas cabeças.
Minhas mãos revirando as surpresas trazidas depois da chuva.
Carrinho sem roda, boneco sem perna, espinha de bagre.
Baiacu sob o sol estufando até estourar.
Naquelas areias catei figurinhas de chiclete.
Roubei o doce da macumba pedindo respeitosa licença aos santos.
Lacei pombos pelos pés, os brancos valiam mais.
Um trocado no bolso

Champagne de reveillon virando ficha de fliperama.

Meu corpo estremecendo num mergulho de verão.
Era o bater das ondas misturado ao fremir das mãos.

Engravidando marés

Guerreei com amêndoas.
Vi um tubarão (depois descobri ser cação) pendurado numa árvore.
Tive pena dele, de bobeira veio se enrolar numa rede e foi morto a pauladas.
Fiquei um bom tempo sem entrar naquelas águas, medo de avistar barbatana.

Pequenas ondas
Hawaii de playmobil.

O barco de Iemanjá que carregamos pra casa e se tornou a nossa nau.
Trampolim pros mais acrobáticos mergulhos.

Siri no caniço, tainha no puçá, espada no arrastão.

Rabo de arraia chicoteando a memória.

No almoço uma fritada de marisco com limão.
Sem princesinha do mar, sem oceanos.
Naquelas águas escuras estão as minhas mais límpidas lembranças.
Praia da bica
da janela deste ônibus te vejo.

Penso no poeta Hart Crane e me lanço em tuas águas.

Onde tudo começa onde tudo termina.

Rio, 21de março de 2009.

22.3.09

"Meu último nome"

Me dera um tanto amarga, confesso,
tua ausência - e nem lembro.
Ficou nessa tua cara amarela,
a minha.

E o nosso jeito de deixar tudo apagado.
Pro meu peito, a faca da velha falta.
E tuas tralhas comigo,

carrego-as como coisas que enfeitam
a cômoda vazia.
E a infância, minha ilha incômoda.

Me propusera o gosto de saber
que o medo é o exato gosto de saber.
O que se sabe não apavora.

E eu sempre soube que não apareceria.

Fiquei em casa esperando:
tua voz,
o tênis,
o peixe,
as velas no bolo ainda te esperam comigo, um assopro -
e o abraço desativado.

Não tenho mais tua presença, é certo.
Mas meu filho terá a minha, a tua também.
No fim, aprenderemos de verdade.

A verdade é o que desaprendemos.

E de tudo que não tive,
só tua sombra pôde roubar os buracos
nas fotografias.

Nas manhãs de praia,
quando viajei pro gelo do teu riso estrábico.
Teu longo bigode escondia.

Só tua sombra aparece na porta da escola.
No campinho de barro, pra testemunhar
o único gol que eu fiz.

Eu lembro,
te desenhei com os cabelos compridos
- eras minha mãe,
pros dias eternos dos pais que não tive.

E fora todos eles.

E agora me presenteias.
Tua ausência me fará tão presente
que meu filho entenderá.
Saberá

o quanto temerei minha própria ausência
temendo a sua.
E no presente,
essa tua falta,

fará de mim teu pai - de alguma forma.
Ainda que ainda, nessa vida ao menos,
seja eu teu primeiro filho.

20.3.09

Voava e luzia

Meu corpo rouco
eu suor se esvai
oco
de remorso
no seu dorso
de serpentinas sensuais

O tom muda
no ritmo em
que o mundo
te circunda
E acalora
benfica
madruga

brontossauro comportado
o espelho te desvela
a renda fina
Acalora
e madruga
benfica

e por não ter outra de volta
não somos nós mas a carta
quem chora
e madruga
benfica
acalora

calibra
você é o centro e o passo
desloca marés nesse caso

pássaro
que morre no ar
e não percebe

não havia chão nem céu
mas morros salpicados
pretos de dourado

Você dançava e luzia
flores vagas no breu
era o umbigo
de toda barriga
Poemia!
Por ti zil regressos.
Por onde sempre recomeço,
sem ter jamais partido.

18.3.09

Viajando

Uma mão na frente,
Outra pra cima –
Veja as nuvens comuns, mas de outros céus,
Sonhos em pó
Salpicados pelos rios,
Cidades sem rumo, repletas
de uma esperança índigo-vã,
destinos em ingredientes exóticos,
Cervejas diferentes
mas de objetivos os mesmos,
Por quês iguais, favelas iguais,
Divindades diferentes
mas penosamente oni-tudos,
aconselhando governantes
das mesmas velhas guerras,
doenças que te matam um parente,
Poesias-dúvida dementes
Como os poetas de todos os lugares,
Incensos que duram minutos
e já deixam de ser,
Recendendo a eternidade no ar,
Engarrafamentos ou sim ou não
mas indriblável poluição –

Estou sentado numa escada,
Numa escala num aeroporto
qualquer, viajando qualquer,
Um porto nunca meu porque não o há,
Um café qualquer, como todos os quaisqueres;
É o que somos, não importa
o quão paciente esperes.


(Aos 25 de janeiro de 2009)

13.3.09

Passeio

Minha flor, eis pra você
um sucesso, um incenso,
um vestido,
um corpo cansado de se vestir !

O que você dá, você se dá,
Os seios rijos, social,
cervejinha transiente
na ilusão de ser
permanente,
O sucesso de um projeto,
deixa eu te contar,
Depende de N-A-D-A !
Sejamos auto-críticos
descendo na Cinelândia,
marcando um encontro,
estudando Kierkegaard,
incompreendendo o ponto,
se espremendo na Linha 2
pra descer em Inhaúma,
Um passeio sem nexo
pelo Rio onde somos,
bebemos cafés e trepamos,
tiramos o lixo à noite,
Sonhando com o dia
em que o Flamengo será hexa,
Comendo um pão na chapa
Na Padaria das Famílias,
passeando pelo in-ser
achando ser,
Acontecendo em fragmentos.


(Aos 25 de janeiro de 2009)

9.3.09

O que é do tempo, ao tempo torna.

Vejo teus dentes. Competem
com tua boca. Repetem
o mesmo riso afável e amarelo
da pequena foto.
Grafada em cores um tanto velhas.
É você lá.
Quer dizer, tu fostes aquela menina loura.
Tinha uma praia amanhecendo nos olhos,
cercada pelo quarto que já não existe mais,
pelo menos não ali, agora.
Porque tudo se foi,
tragado, devorado por abelhas e mosquitos sazonais.

E no que não és mais,
apaga-se outra noite.

O amarelo fugiu dos teus cabelos.
Não é pra menos,
a vitória é ainda estar por aqui.
E algumas coisas vão se enrolando nos fios.
Também perdi o pequeno e solitário Rafael.
Nada que o traga, a não ser essas lembranças fracas.



A chaleira nos chama pro hoje.
Ferve a água posta.
Vamos à cozinha, enquanto te rodeio
ouço teu riso viver comigo o agora.
E estalamos juntos algumas costelas de março de dois mil e nove.

Ficou no quarto a pequena foto com você lá dentro,
sobre o livro, sobre a cama - sob a luz.
Sobre teu ombro, o mesmo pedaço de lustre não resistiu.
Nem você!
Loura num carnaval, sorrindo outra vez pra quem quer que seja,
que naquela noite, dia, ou tarde,
pediu-lhe uma pose,
e posou também com a máquina fotográfica entre as mãos.

Sobreviver é acompanhar.

Deixemos que tudo torne, se é pra ser.
Sem que saibamos, claro - mas não sabemos.
Tomemos o chá, que já esfria.
Uma coisa eu sei, ou pelo menos imagino que eu saiba:
somos apenas o que fomos.

2.3.09

Lara Leal

.........................................................Fotografia de Chema Madoz.

A Lara é uma companheira de escaladas em andaimes pelo mundo da restauro, estudante de artes e integrante do coletivo de artistas 13 numa noite, há pouco tempo descobri que além de todas essa atividades ela também se dedica às letras. Abaixo uma pequena amostra da boa poesia desta menina.



À noite prefiro sozinha

A madrugada é minha

Pensa assim
Quem caminha o dia lento
Passando através do vento
Sem prender suas migalhas
Sem apreender os traços que no rosto ele deixa

Truque do destino, do moinho mundo
Deixa-me assim queixando-me dele
Do seu encontro raso
Com minha aura rasurada
De alma velha, sempre à espera
De a sorte levar à calma tormenta
Me deitar

Estou lendo trabalhando os olhos
estou vendo trabalhando o senso
Estrategicamente, voce não sabe, estou sendo.

Que aborrecimento isso
Confunde e empaca o que aflito assiste
Calado o concentrado ego
Alheio ao entorno
Em seu deleite desarmado.

Enquanto isso sou esse arbítrio
Livre, preso de cabeça
Pra cima
Com os pés amarrados
Em nós de cadarço de sapato.

Lara Leal


Mais da Lara em:
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